Livro está previsto para agosto
Leia primeiro capitulo do livro
Morte prematura
Hartley Coleridge
Ela feneceu como o orvalho matutino
Antes mesmo de o sol se elevar;
Tão breve seu tempo, o fim tão repentino
Mal soube o que era suspirar.
Como a rosa exala seu perfume suave,
O doce amor flutuava a seu redor;
Ela cresceu admirada – mas o destino tão grave
Se esgueirava, invisível, sem temor.
O amor era aqui seu Anjo da guarda,
Mas o Amor à Morte a entregou;
Se o Amor era bom, por que a salvaguarda
Da Morte sagrada nos amedrontou?
11
próNlogo
Perdida
A maioria das menininhas aguardava ansiosamente o momento
em que o pai chegava em casa. Mas não Yesubai. Assim que as
badaladas do sino anunciavam a chegada dele, o medo tomava seu
coração, apertando-o com força, e a jovem parava de respirar.
Ninguém que observasse a pequena criança percebia o terror
mortal que ela realmente sentia. Via-se apenas uma princesa diminuta,
adornada com as mais finas sedas. Seus olhos grandes e
de uma cor incomum de lavanda, emoldurados por cílios grossos
e escuros sobre o rosto em formato de coração, eram capazes de
derreter até o mais duro coração. Por fora, ela era calma e pacífica
como um lago na montanha. Não havia nela nada de astúcia ou de
mistério – ao menos não em sua aparência externa. A fisionomia
de Yesubai em nada refletia a do pai.
Apesar disso, ninguém que trabalhava próximo à família arriscaria
sequer um sussurro sobre a possibilidade de alguma infidelidade
por parte da falecida mulher de seu amo. Ninguém seria
tão burro. Contudo, todos pensavam isso. Todos se perguntavam
como uma joia tão rara teria nascido de uma fonte tão impura. E
quem mais refletia sobre isso era a amada babá de Yesubai, Isha.
12
A serviçal Isha fora chamada quase que imediatamente após a
morte da mulher do amo, Yuvakshi. Na verdade, Isha tinha sido
amiga da parteira que ajudara a dar à luz o bebê de Yuvakshi. Porém,
logo após o nascimento de sua jovem protegida, a lamentável
morte da senhora foi anunciada. A isso se seguiu o misterioso desaparecimento
da parteira. Isha, que era ama-seca, foi contratada,
e ela e a criança foram banidas, sendo mandadas para o extremo
mais distante da suntuosa mansão no pequeno reino de Bhreenam.
Bhreenam já tinha sido um lugar pacífico. O rei era velho, mas
um bom homem, com pouquíssimas ambições políticas. A maior
parte da população era composta de pastores e agricultores, e as
forças militares tinham o tamanho necessário apenas para oferecer
segurança contra baderneiros ou bêbados ocasionais. Aquele era
um bom lugar para se morar... antigamente.
Agora, um novo comandante havia assumido o poder. O mesmo
homem que contratara Isha. Um homem sombrio. Perigoso. Por
fora, claro, era todo sorrisos e demonstrava deferência ao rei, mas
Isha precisava se esforçar muito para não fazer um apelo aos deuses,
pedindo proteção contra o mal, cada vez que ele se aproximava.
Seu patrão a apavorava. Mais do que qualquer outra pessoa
que ela já conhecera.
A suspeita de Isha de que o pai da criança fizera algo terrível à
esposa aumentava ainda mais quando ele visitava o quarto da bebê.
Ela muitas vezes o surpreendia lá, encarando a filha com um nítido
desprezo estampado no rosto. Covardemente, ela esperava junto à
porta, parcialmente escondida, esfregando as mãos enquanto murmurava
súplicas silenciosas para que a menininha a quem passara
a amar não fizesse nada que pudesse irritar o pai.
Quando ele se retirava, ela suspirava de alívio e agradecia aos
deuses por terem feito com que sua protegida não despertasse. Porém,
após cada uma dessas visitas, ela descobria que a menininha
13
na verdade estava acordada, os olhos líquidos ainda encarando o
ponto onde havia pouco estivera o rosto do pai. Os braços e as pernas
da bebê permaneciam imóveis e o cobertor continuava firme,
enrolado nela.
Com o passar do tempo, apesar das visitas frequentes do pai
da menina, Isha passou a desejar que Yesubai demonstrasse mais
emoções. Com efeito, muitas vezes se perguntava se estaria fazendo
algo errado. Ela não era uma criança malvada. Nada disso. Yesubai
apenas tinha um temperamento sério.
Ela não brincava como as outras crianças. Em vez de sonhar
acordada ou fazer de conta com seus brinquedos, apenas os posicionava
em um lugar onde, segundo ela, ficavam mais bonitos de
se ver. Os sorrisos eram raros. Com sua beleza inegável, a maioria
das pessoas a enxergava somente como uma bonequinha. Apenas
Isha era capaz de captar os sentimentos profundos que corriam sob
a superfície.
As visitas do pai de Yesubai se tornaram menos assíduas à medida
que a menina foi crescendo, ou seja, na maior parte do tempo
ele deixava a filha em paz – exceto quando a levava a festas e eventos
políticos. Nessas ocasiões, a beleza rara da menina parecia
agradá-lo, especialmente quando o rei tecia comentários sobre ela.
Yesubai seguia o pai de ministro em ministro, até mesmo segurando
sua mão quando ele exigia, e não abria a boca a menos que
alguém falasse diretamente com ela. Nesses casos, era educada e
perfeita como uma princesa, e sua natureza tranquila encantava a
todos os que a conheciam.
Embora a usasse em proveito próprio, o pai de Yesubai não lhe
dirigia uma palavra amável e entregava a menina aos cuidados de
outra pessoa assim que era possível. Só quando estava em segurança
nos braços de Isha é que a jovem relaxava os ombros e seus
lindos olhos se fechavam. Então a babá acomodava aquela pequena
14
criatura etérea na cama e refletia, sempre, se ela não seria uma mulher
adulta, mais sábia do que permitia a sua idade, presa naquele
corpo de criança.
Quando Yesubai tinha 8 anos, seu pai partiu numa viagem pela
qual demonstrara estar curiosamente entusiasmado. O brilho em
seus olhos era assustador, e Isha torceu em segredo para que a razão
de sua partida, qualquer que fosse, o mantivesse afastado por
tempo indefinido. Porém, como sempre, ele voltou e ela aguardou,
com temor paralisante, o que viria a seguir. Se a viagem do amo
tivesse sido bem-sucedida, ele mandaria os serviçais distribuírem
caixas de flores recém-colhidas; caso contrário, iria atrás de Yesubai.
Isha não precisou esperar muito tempo.
Quando irrompeu no quarto, afoita, viu a menina que passara
a amar em pé, imóvel, olhando fixamente para a porta. Tomou-a
pela mão e apertou com força. Os olhos cor de lavanda piscaram
uma vez, duas, e então se voltaram para a velha serviçal. O mais
tênue movimento de canto de boca indicava que Yesubai estava
grata por sua presença.
Enquanto a menina cobria cuidadosamente os cabelos que iam
até a cintura com um lenço roxo, Isha andou pelo quarto, já impecável,
e alinhou um livro sobre a mesa, secou a condensação da
jarra de água, esticou um cobertor e afofou algumas almofadas.
Ouviu-se um ruído de botas pesadas se aproximando pelo corredor
e rapidamente Yesubai prendeu o lenço, passando-o sobre o
rosto de modo que só seus lindos olhos pudessem ser vistos. Isha
se posicionou na lateral do quarto e ficou na penumbra, tomando
coragem para defender a menina, mas torcendo para que isso não
fosse necessário. Por mais que quisesse ser uma mulher forte, do
tipo que não se curvava diante do mal, sempre sentia um alívio
culpado quando a menininha que sabia demais era capaz de lidar
com o pai sem a ajuda de ninguém.
15
Um dia, pensou, um dia ficarei ao lado dela, sem medo.
Porém Isha não se manteve destemida ao lado de Yesubai – pelo
menos não imediatamente. Quando o pai da menina entrou no
quarto, com o poder crepitando nas pontas dos dedos, tanto a jovem
quanto a idosa souberam que a visita daquele dia não traria
flores, mas espinhos. Yesubai fez uma mesura para o pai e baixou o
olhar humildemente, como ele esperava, mas então ele atacou, primeiro
com o poder antinatural que trazia armazenado nos braços
e depois com os punhos.
Sedas preciosas foram consumidas por labaredas. Pedaços de
pedra voaram, chocando-se contra a parede oposta. Delicadas bonecas,
com rostos de cera minuciosamente esculpidos, derreteram
completamente. Quando a destruição física se mostrou incapaz de
acalmá-lo, ele dirigiu a ira contra a filha.
Bravamente, ela se manteve de pé diante dele, calma e com a
cabeça baixa, enquanto o pai esbravejava sobre tudo o que queria
mas estava fora de seu alcance: o desejo por uma mulher que o
rejeitara, o fato de Yesubai ser frágil e indefesa e de que seu nascimento
lhe negara o filho homem que ele tanto queria a seu lado.
Com a fúria de um touro, ele levou o braço atrás e acertou Yesubai
no rosto com tanta força que levantou seu corpo franzino
do chão. O vento arremessou o véu para o lado e sacudiu seus
cabelos. Com um ruído de revirar o estômago, Yesubai se chocou
contra a parede e deslizou lentamente até não ser mais que um
amontoado no chão. A menina ficou imóvel, com o corpo machucado,
parecendo uma boneca que fora atirada sobre rochas
pontiagudas.
Com um grito, Isha correu, se colocando no caminho do monstro,
recebendo em troca uma perna quebrada, a traqueia comprimida,
dois olhos roxos e hematomas profundos por todo o corpo.
Sua protegida estava morta e Isha sabia que logo se juntaria a ela.
16
No silêncio após a partida dele, Isha recobrou os sentidos. A dor
percorria seu corpo e latejava por trás de suas pálpebras, porém ela
sentiu um leve toque no braço. Yesubai. A menina estava viva.
Ela tocou a amada babá com dedos macios e vacilantes, e um
formigamento morno aliviou a dor que percorria os braços e as
pernas de Isha. Passaram-se horas e, à medida que se recuperava,
Isha refletia sobre o que deduzira dos acessos de raiva de seu amo.
Tudo indicava que sua tentativa recente de se infiltrar em um reino
vizinho havia fracassado, o que provocara sua fúria. Ele exclamara
que os amuletos seriam dele de qualquer maneira e que, se fosse
necessário, lutaria contra mil soldados para pôr as mãos nos jovens
príncipes.
Enquanto batia na filha, dissera que ela era tão imprestável e
submissa quanto a mãe, que um homem poderoso como ele precisava
de uma mulher forte e decidida a seu lado e que deveria ter
matado Yuvakshi antes de ela lhe dar uma filha fraca, uma fonte
permanente de problemas para ele.
Isha continuou deitada em silêncio, o inchaço do rosto e do
corpo diminuindo graças ao toque curativo de Yesubai. Ainda
assim, a menina, com o lindo rosto marcado por cortes causados
pelos anéis do pai, chorou e se desculpou por não poder fazer
muito para ajudá-la com a perna. Não importava. Isha se recuperaria.
No dia seguinte, a dificuldade de caminhar serviu para lembrá-
-la de sempre lutar contra o mal. Isha até sentia certo orgulho por
saber que, no fim das contas, tivera a coragem de defender sua
protegida. Mesmo assim, por mais heroica que tivesse sido, ainda
tinha um medo terrível do futuro. O que seu amo faria quando
descobrisse que as duas não haviam morrido?
Naquele dia repleto de dor e tristeza, Isha compreendeu duas
coisas muito importantes.
17
Primeiro: existia um poder mágico, que era usado de forma malévola
pelo pai, mas que de algum modo havia sido transmitido à
filha. Segundo: o pai de Yesubai realmente tinha matado a esposa
e não hesitaria em perpetrar outros assassinatos. Ela já suspeitava
que ele tivesse cometido um mal terrível no passado, mas agora
sabia que era capaz de algo ainda pior. Muito pior.
19
1N
Véu
Eu estava sentada diante do espelho enquanto Isha escovava
meus cabelos com movimentos delicados e manipulava as pétalas
das flores amarelas com as quais eu acabara de fazer um arranjo.
Meu pai havia retornado de uma campanha bem-sucedida, que lhe
abrira novas oportunidades financeiras. Não que o povo ou o rei
fossem ver uma moeda de ouro, uma ovelha gorda ou mesmo um
rolo de tecido fino que fosse. Não. Os únicos que lucrariam com
as conquistas de meu pai seriam seus aliados próximos – homens
quase tão vis, traiçoeiros e corruptos quanto ele.
É claro que nenhum chegara perto de praticar atos como os
dele. Aliás, se eu comparasse os feitos daqueles sanguessugas
com os crimes cometidos por meu pai, não chegariam nem a
seus pés. Havia muito tempo eu deixara de contar o número de
pessoas que ele tinha assassinado das formas mais violentas. Se
não fosse por Isha, eu mesma teria desaparecido misteriosamente
anos atrás.
Infelizmente, a magia que eu tinha sido capaz de desenvolver só
surtia efeito em mim, com exceção de uma pequena dose de poder
de cura que eu proporcionara a Isha ao longo dos anos – uma
20
habilidade que ficara cuidadosamente em segredo. Nós duas sabíamos
o perigo que correríamos se meu pai descobrisse que eu havia
herdado a mais ínfima porção da magia que ele dominava. Assim,
observávamos e esperávamos, mas nunca havia um momento em
que não estivéssemos cercadas, em que ao menos um guarda não
nos vigiasse com total atenção. Todos sabiam o que aconteceria se
descumprissem uma ordem de meu pai. Até que as circunstâncias
mudassem, éramos prisioneiras.
Eu era sempre cuidadosa, sempre vigilante, ainda mais agora que
ele tinha retornado. Era o meu 16o aniversário, e o rei, um homem
tão bondoso quanto meu pai era desprezível, solicitara minha presença
em uma celebração. Ele daria uma grande festa e, embora eu
estivesse grata por sua consideração em me convidar, meu estômago
se contorcia de nervosismo.
Quando os festejos foram anunciados, estremeci por saber
que a atividade exigiria que eu estivesse acompanhada de meu
pai, algo que eu detestava e – ainda pior – que era inerentemente
perigoso. Mesmo assim, passar o dia do meu aniversário comparecendo
a uma festa suntuosa no palácio era algo tão raro e especial
que me deixei levar pelo entusiasmo. Principalmente porque
eu achava que poderia ter a oportunidade de visitar o famoso
jardim do rei.
Isha anunciou que o penteado estava pronto. Ela o havia arrumado
de modo que a maior parte pendesse pelas minhas costas,
mas tinha prendido várias mechas no topo da cabeça, com pequenas
joias entremeadas. Trajando as sedas suntuosas porém visivelmente
modestas que meu pai me permitia usar, eu me apresentei
para a inspeção de Isha.
Ela estalou a língua.
– Você sempre foi uma linda criança, minha pequena Yesubai,
mas está se tornando uma jovem deslumbrante.
Leia primeiro capitulo do livro
Morte prematura
Hartley Coleridge
Ela feneceu como o orvalho matutino
Antes mesmo de o sol se elevar;
Tão breve seu tempo, o fim tão repentino
Mal soube o que era suspirar.
Como a rosa exala seu perfume suave,
O doce amor flutuava a seu redor;
Ela cresceu admirada – mas o destino tão grave
Se esgueirava, invisível, sem temor.
O amor era aqui seu Anjo da guarda,
Mas o Amor à Morte a entregou;
Se o Amor era bom, por que a salvaguarda
Da Morte sagrada nos amedrontou?
11
próNlogo
Perdida
A maioria das menininhas aguardava ansiosamente o momento
em que o pai chegava em casa. Mas não Yesubai. Assim que as
badaladas do sino anunciavam a chegada dele, o medo tomava seu
coração, apertando-o com força, e a jovem parava de respirar.
Ninguém que observasse a pequena criança percebia o terror
mortal que ela realmente sentia. Via-se apenas uma princesa diminuta,
adornada com as mais finas sedas. Seus olhos grandes e
de uma cor incomum de lavanda, emoldurados por cílios grossos
e escuros sobre o rosto em formato de coração, eram capazes de
derreter até o mais duro coração. Por fora, ela era calma e pacífica
como um lago na montanha. Não havia nela nada de astúcia ou de
mistério – ao menos não em sua aparência externa. A fisionomia
de Yesubai em nada refletia a do pai.
Apesar disso, ninguém que trabalhava próximo à família arriscaria
sequer um sussurro sobre a possibilidade de alguma infidelidade
por parte da falecida mulher de seu amo. Ninguém seria
tão burro. Contudo, todos pensavam isso. Todos se perguntavam
como uma joia tão rara teria nascido de uma fonte tão impura. E
quem mais refletia sobre isso era a amada babá de Yesubai, Isha.
12
A serviçal Isha fora chamada quase que imediatamente após a
morte da mulher do amo, Yuvakshi. Na verdade, Isha tinha sido
amiga da parteira que ajudara a dar à luz o bebê de Yuvakshi. Porém,
logo após o nascimento de sua jovem protegida, a lamentável
morte da senhora foi anunciada. A isso se seguiu o misterioso desaparecimento
da parteira. Isha, que era ama-seca, foi contratada,
e ela e a criança foram banidas, sendo mandadas para o extremo
mais distante da suntuosa mansão no pequeno reino de Bhreenam.
Bhreenam já tinha sido um lugar pacífico. O rei era velho, mas
um bom homem, com pouquíssimas ambições políticas. A maior
parte da população era composta de pastores e agricultores, e as
forças militares tinham o tamanho necessário apenas para oferecer
segurança contra baderneiros ou bêbados ocasionais. Aquele era
um bom lugar para se morar... antigamente.
Agora, um novo comandante havia assumido o poder. O mesmo
homem que contratara Isha. Um homem sombrio. Perigoso. Por
fora, claro, era todo sorrisos e demonstrava deferência ao rei, mas
Isha precisava se esforçar muito para não fazer um apelo aos deuses,
pedindo proteção contra o mal, cada vez que ele se aproximava.
Seu patrão a apavorava. Mais do que qualquer outra pessoa
que ela já conhecera.
A suspeita de Isha de que o pai da criança fizera algo terrível à
esposa aumentava ainda mais quando ele visitava o quarto da bebê.
Ela muitas vezes o surpreendia lá, encarando a filha com um nítido
desprezo estampado no rosto. Covardemente, ela esperava junto à
porta, parcialmente escondida, esfregando as mãos enquanto murmurava
súplicas silenciosas para que a menininha a quem passara
a amar não fizesse nada que pudesse irritar o pai.
Quando ele se retirava, ela suspirava de alívio e agradecia aos
deuses por terem feito com que sua protegida não despertasse. Porém,
após cada uma dessas visitas, ela descobria que a menininha
13
na verdade estava acordada, os olhos líquidos ainda encarando o
ponto onde havia pouco estivera o rosto do pai. Os braços e as pernas
da bebê permaneciam imóveis e o cobertor continuava firme,
enrolado nela.
Com o passar do tempo, apesar das visitas frequentes do pai
da menina, Isha passou a desejar que Yesubai demonstrasse mais
emoções. Com efeito, muitas vezes se perguntava se estaria fazendo
algo errado. Ela não era uma criança malvada. Nada disso. Yesubai
apenas tinha um temperamento sério.
Ela não brincava como as outras crianças. Em vez de sonhar
acordada ou fazer de conta com seus brinquedos, apenas os posicionava
em um lugar onde, segundo ela, ficavam mais bonitos de
se ver. Os sorrisos eram raros. Com sua beleza inegável, a maioria
das pessoas a enxergava somente como uma bonequinha. Apenas
Isha era capaz de captar os sentimentos profundos que corriam sob
a superfície.
As visitas do pai de Yesubai se tornaram menos assíduas à medida
que a menina foi crescendo, ou seja, na maior parte do tempo
ele deixava a filha em paz – exceto quando a levava a festas e eventos
políticos. Nessas ocasiões, a beleza rara da menina parecia
agradá-lo, especialmente quando o rei tecia comentários sobre ela.
Yesubai seguia o pai de ministro em ministro, até mesmo segurando
sua mão quando ele exigia, e não abria a boca a menos que
alguém falasse diretamente com ela. Nesses casos, era educada e
perfeita como uma princesa, e sua natureza tranquila encantava a
todos os que a conheciam.
Embora a usasse em proveito próprio, o pai de Yesubai não lhe
dirigia uma palavra amável e entregava a menina aos cuidados de
outra pessoa assim que era possível. Só quando estava em segurança
nos braços de Isha é que a jovem relaxava os ombros e seus
lindos olhos se fechavam. Então a babá acomodava aquela pequena
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criatura etérea na cama e refletia, sempre, se ela não seria uma mulher
adulta, mais sábia do que permitia a sua idade, presa naquele
corpo de criança.
Quando Yesubai tinha 8 anos, seu pai partiu numa viagem pela
qual demonstrara estar curiosamente entusiasmado. O brilho em
seus olhos era assustador, e Isha torceu em segredo para que a razão
de sua partida, qualquer que fosse, o mantivesse afastado por
tempo indefinido. Porém, como sempre, ele voltou e ela aguardou,
com temor paralisante, o que viria a seguir. Se a viagem do amo
tivesse sido bem-sucedida, ele mandaria os serviçais distribuírem
caixas de flores recém-colhidas; caso contrário, iria atrás de Yesubai.
Isha não precisou esperar muito tempo.
Quando irrompeu no quarto, afoita, viu a menina que passara
a amar em pé, imóvel, olhando fixamente para a porta. Tomou-a
pela mão e apertou com força. Os olhos cor de lavanda piscaram
uma vez, duas, e então se voltaram para a velha serviçal. O mais
tênue movimento de canto de boca indicava que Yesubai estava
grata por sua presença.
Enquanto a menina cobria cuidadosamente os cabelos que iam
até a cintura com um lenço roxo, Isha andou pelo quarto, já impecável,
e alinhou um livro sobre a mesa, secou a condensação da
jarra de água, esticou um cobertor e afofou algumas almofadas.
Ouviu-se um ruído de botas pesadas se aproximando pelo corredor
e rapidamente Yesubai prendeu o lenço, passando-o sobre o
rosto de modo que só seus lindos olhos pudessem ser vistos. Isha
se posicionou na lateral do quarto e ficou na penumbra, tomando
coragem para defender a menina, mas torcendo para que isso não
fosse necessário. Por mais que quisesse ser uma mulher forte, do
tipo que não se curvava diante do mal, sempre sentia um alívio
culpado quando a menininha que sabia demais era capaz de lidar
com o pai sem a ajuda de ninguém.
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Um dia, pensou, um dia ficarei ao lado dela, sem medo.
Porém Isha não se manteve destemida ao lado de Yesubai – pelo
menos não imediatamente. Quando o pai da menina entrou no
quarto, com o poder crepitando nas pontas dos dedos, tanto a jovem
quanto a idosa souberam que a visita daquele dia não traria
flores, mas espinhos. Yesubai fez uma mesura para o pai e baixou o
olhar humildemente, como ele esperava, mas então ele atacou, primeiro
com o poder antinatural que trazia armazenado nos braços
e depois com os punhos.
Sedas preciosas foram consumidas por labaredas. Pedaços de
pedra voaram, chocando-se contra a parede oposta. Delicadas bonecas,
com rostos de cera minuciosamente esculpidos, derreteram
completamente. Quando a destruição física se mostrou incapaz de
acalmá-lo, ele dirigiu a ira contra a filha.
Bravamente, ela se manteve de pé diante dele, calma e com a
cabeça baixa, enquanto o pai esbravejava sobre tudo o que queria
mas estava fora de seu alcance: o desejo por uma mulher que o
rejeitara, o fato de Yesubai ser frágil e indefesa e de que seu nascimento
lhe negara o filho homem que ele tanto queria a seu lado.
Com a fúria de um touro, ele levou o braço atrás e acertou Yesubai
no rosto com tanta força que levantou seu corpo franzino
do chão. O vento arremessou o véu para o lado e sacudiu seus
cabelos. Com um ruído de revirar o estômago, Yesubai se chocou
contra a parede e deslizou lentamente até não ser mais que um
amontoado no chão. A menina ficou imóvel, com o corpo machucado,
parecendo uma boneca que fora atirada sobre rochas
pontiagudas.
Com um grito, Isha correu, se colocando no caminho do monstro,
recebendo em troca uma perna quebrada, a traqueia comprimida,
dois olhos roxos e hematomas profundos por todo o corpo.
Sua protegida estava morta e Isha sabia que logo se juntaria a ela.
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No silêncio após a partida dele, Isha recobrou os sentidos. A dor
percorria seu corpo e latejava por trás de suas pálpebras, porém ela
sentiu um leve toque no braço. Yesubai. A menina estava viva.
Ela tocou a amada babá com dedos macios e vacilantes, e um
formigamento morno aliviou a dor que percorria os braços e as
pernas de Isha. Passaram-se horas e, à medida que se recuperava,
Isha refletia sobre o que deduzira dos acessos de raiva de seu amo.
Tudo indicava que sua tentativa recente de se infiltrar em um reino
vizinho havia fracassado, o que provocara sua fúria. Ele exclamara
que os amuletos seriam dele de qualquer maneira e que, se fosse
necessário, lutaria contra mil soldados para pôr as mãos nos jovens
príncipes.
Enquanto batia na filha, dissera que ela era tão imprestável e
submissa quanto a mãe, que um homem poderoso como ele precisava
de uma mulher forte e decidida a seu lado e que deveria ter
matado Yuvakshi antes de ela lhe dar uma filha fraca, uma fonte
permanente de problemas para ele.
Isha continuou deitada em silêncio, o inchaço do rosto e do
corpo diminuindo graças ao toque curativo de Yesubai. Ainda
assim, a menina, com o lindo rosto marcado por cortes causados
pelos anéis do pai, chorou e se desculpou por não poder fazer
muito para ajudá-la com a perna. Não importava. Isha se recuperaria.
No dia seguinte, a dificuldade de caminhar serviu para lembrá-
-la de sempre lutar contra o mal. Isha até sentia certo orgulho por
saber que, no fim das contas, tivera a coragem de defender sua
protegida. Mesmo assim, por mais heroica que tivesse sido, ainda
tinha um medo terrível do futuro. O que seu amo faria quando
descobrisse que as duas não haviam morrido?
Naquele dia repleto de dor e tristeza, Isha compreendeu duas
coisas muito importantes.
17
Primeiro: existia um poder mágico, que era usado de forma malévola
pelo pai, mas que de algum modo havia sido transmitido à
filha. Segundo: o pai de Yesubai realmente tinha matado a esposa
e não hesitaria em perpetrar outros assassinatos. Ela já suspeitava
que ele tivesse cometido um mal terrível no passado, mas agora
sabia que era capaz de algo ainda pior. Muito pior.
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1N
Véu
Eu estava sentada diante do espelho enquanto Isha escovava
meus cabelos com movimentos delicados e manipulava as pétalas
das flores amarelas com as quais eu acabara de fazer um arranjo.
Meu pai havia retornado de uma campanha bem-sucedida, que lhe
abrira novas oportunidades financeiras. Não que o povo ou o rei
fossem ver uma moeda de ouro, uma ovelha gorda ou mesmo um
rolo de tecido fino que fosse. Não. Os únicos que lucrariam com
as conquistas de meu pai seriam seus aliados próximos – homens
quase tão vis, traiçoeiros e corruptos quanto ele.
É claro que nenhum chegara perto de praticar atos como os
dele. Aliás, se eu comparasse os feitos daqueles sanguessugas
com os crimes cometidos por meu pai, não chegariam nem a
seus pés. Havia muito tempo eu deixara de contar o número de
pessoas que ele tinha assassinado das formas mais violentas. Se
não fosse por Isha, eu mesma teria desaparecido misteriosamente
anos atrás.
Infelizmente, a magia que eu tinha sido capaz de desenvolver só
surtia efeito em mim, com exceção de uma pequena dose de poder
de cura que eu proporcionara a Isha ao longo dos anos – uma
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habilidade que ficara cuidadosamente em segredo. Nós duas sabíamos
o perigo que correríamos se meu pai descobrisse que eu havia
herdado a mais ínfima porção da magia que ele dominava. Assim,
observávamos e esperávamos, mas nunca havia um momento em
que não estivéssemos cercadas, em que ao menos um guarda não
nos vigiasse com total atenção. Todos sabiam o que aconteceria se
descumprissem uma ordem de meu pai. Até que as circunstâncias
mudassem, éramos prisioneiras.
Eu era sempre cuidadosa, sempre vigilante, ainda mais agora que
ele tinha retornado. Era o meu 16o aniversário, e o rei, um homem
tão bondoso quanto meu pai era desprezível, solicitara minha presença
em uma celebração. Ele daria uma grande festa e, embora eu
estivesse grata por sua consideração em me convidar, meu estômago
se contorcia de nervosismo.
Quando os festejos foram anunciados, estremeci por saber
que a atividade exigiria que eu estivesse acompanhada de meu
pai, algo que eu detestava e – ainda pior – que era inerentemente
perigoso. Mesmo assim, passar o dia do meu aniversário comparecendo
a uma festa suntuosa no palácio era algo tão raro e especial
que me deixei levar pelo entusiasmo. Principalmente porque
eu achava que poderia ter a oportunidade de visitar o famoso
jardim do rei.
Isha anunciou que o penteado estava pronto. Ela o havia arrumado
de modo que a maior parte pendesse pelas minhas costas,
mas tinha prendido várias mechas no topo da cabeça, com pequenas
joias entremeadas. Trajando as sedas suntuosas porém visivelmente
modestas que meu pai me permitia usar, eu me apresentei
para a inspeção de Isha.
Ela estalou a língua.
– Você sempre foi uma linda criança, minha pequena Yesubai,
mas está se tornando uma jovem deslumbrante.
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