domingo, 24 de março de 2013

No século 14, ele escreveu os versos mais famosos do mundo e fundou a língua italiana moderna. Mas, em vez de ser aclamado em seu tempo, o poeta foi perseguido e acabou morrendo no exílio.
De alguma forma, todos os criadores de “mundos virtuais” em Hollywood e na indústria de jogos eletrônicos são herdeiros do gênio criativo de Dante Alighieri. A diferença é que o universo descrito por Dante em sua obra poética Divina Comédia permanece vivo no imaginário do Ocidente há mais de 700 anos. “Ele teve um papel revolucionário ao mudar os padrões da representação medieval da realidade”, diz Giuseppe Mazzotta, professor de Literatura e Língua Italiana da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e presidente da Sociedade Dante da América. “A Divina Comédia não era mais uma daquelas histórias de cavaleiros imaginários.”
No livro, com ajuda do poeta clássico Virgílio (seu guia durante parte da “viagem”), Dante percorre os diversos níveis do Inferno, do Purgatório e do Paraíso. Sua descrição dessas três áreas é tão vívida que serviu de inspiração a pintores de todas as épocas, dos góticos aos modernistas. De quebra, sua obra é considerada fundadora da língua italiana moderna. É que, ao optar por escrevê-la em italiano vulgar (na época, o latim ainda era a língua clássica da literatura), Dante deu o empurrão para a difusão do idioma que hoje é escrito e falado pelos tetracampeões mundiais. Não é à toa que até quem nunca leu uma linha de sua Divina Comédia – que, aliás, não é nem um pouco engraçada – conhece a expressão “inferno de Dante” para descrever um lugar (ou uma situação) de sofrimentos intermináveis. O adjetivo “dantesco” continua sendo usado como sinônimo de horrores diabólicos.
O que nem todo mundo sabe é que a vida do próprio Dante foi um drama repleto de tragédias provocadas por desencantos amorosos e ferrenhas disputas políticas que culminaram com um melancólico fim de vida no exílio. Sua trajetória pessoal seguiu o rumo oposto ao percorrido por ele na Divina Comédia. Enquanto o Dante da ficção começa sua saga no Inferno e vai até o Paraíso, o Dante real foi feliz quando jovem e amargou um profundo sofrimento na velhice.
 
Além dos relatos de que ele nasceu em Florença em 1265 e perdeu a mãe aos 5 anos de idade, sendo educado por tutores religiosos, os primeiros anos da vida de Dante continuam envoltos em mistério. Mas os pesquisadores sabem ao menos que o fato mais significativo dessa época, que iria marcá-lo para o resto da vida, não teve nada a ver com a morte da mãe – e sim com uma paixão precoce fulminante. Tudo aconteceu nas ruas de Florença quando ele tinha apenas 9 anos e viu uma bela menina chamada Beatriz. Foi amor à primeira vista. O problema é que, apesar de ainda ser uma criança para os padrões de hoje, Dante já estava comprometido com uma noiva, Gemma Donati, num relacionamento arranjado por seu pai. Respeitando a vontade familiar, eles se casaram aos 14 anos. A união renderia três filhos, mas nunca contaria com a entrega total do poeta.
Quando completou 18 anos, Dante teve um último encontro com a amada Beatriz. Ao vê-lo em uma rua de Florença, sua musa teria apenas acenado. Depois desse gesto, o convívio entre os dois acabou sem que eles jamais tivessem trocado uma palavra. Até hoje os biógrafos não têm certeza sobre a verdadeira identidade do amor de Dante – especula-se que a jovem fosse Beatriz Portinari, que se casou com um aristocrata florentino. Inspirado por ela, Dante passou a estudar filosofia e escreveu os versos de Vida Nova, um texto com referências autobiográficas. “Apesar de os eventos desse pequeno livro não serem relatos confiáveis da vida de Dante, eles sugerem que uma das principais ocupações dele durante o fim de sua adolescência e começo da idade adulta era pensar e escrever sobre Beatriz”, afirma Ronald Martinez, tradutor da Divina Comédia para o inglês e professor de Literatura Italiana na Universidade de Brown, nos Estados Unidos.
   Em 1290, Dante recebe a notícia da morte de Beatriz. Como ele ainda estava escrevendo a obra Vida Nova, seu livro incorporou vários poemas angustiados sobre a perda de sua musa inspiradora. No último capítulo, o poeta faz uma promessa: nunca mais escreveria nada sobre Beatriz até que fosse capaz de dedicar a ela algo que “nunca tivesse sido escrito sobre nenhuma mulher”. A promessa foi cumprida anos depois, com sua Divina Comédia.
Assim que Beatriz morreu, o poeta já havia trocado o latim pelo italiano em seus textos, tendo sido provavelmente inspirado por outros intelectuais da época, como o escritor Guido Cavalcanti, que se tornou seu grande amigo. Outro amigo teria sido o filósofo Brunetto Latini, ex-professor de Dante e referência entre os pensadores florentinos do século 13. Apesar da amizade que mantinha com ambos, Dante colocou Latini e o pai de Cavalcanti no Inferno da Divina Comédia.
Mas seu destino trágico seria selado ao se envolver com a violenta e corrupta política florentina, cujas disputas, naquela época, costumavam ser resolvidas em conflitos armados. Nesse tempo, a Itália não passava de um amontoado de cidades-estados autônomos que viviam guerreando entre si. Como toda a região, Florença estava dividida entre os partidários do papa, chamados de guelfos, e os que apoiavam o imperador do Sacro Império Romano, chamados de guibelinos – dois séculos depois de Dante, a rivalidade entre os dois grupos inspiraria o inglês William Shakespeare a criar os Capuletto e os Montecchio de Romeu e Julieta.
Após a vitória dos guelfos, grupo do qual Dante fazia parte, o futuro parecia promissor para o jovem poeta. O problema é que, uma vez no poder, os guelfos passaram a brigar entre si, divididos em duas facções: os neri (“negros”, em italiano), que apoiavam uma influência maior do Vaticano na cidade, e os bianchi (“brancos”, à qual a família Alighieri pertencia), que lutava por maior autonomia para Florença.
Apesar da disputa entre as facções, Dante consegue ser eleito, aos 35 anos, para o cargo de prior da República de Florença (a cidade era governada por seis priores, “presidentes” organizados num conselho). Mas, ao chegar ao poder, ele teve que tomar algumas decisões duras. A primeira foi expulsar líderes políticos que ainda tumultuavam a cidade. Entre os bianchi exilados estava seu grande amigo Guido Cavalcanti, e, entre os neri, Corso Donati, parente de sua mulher e aliado de primeira hora do papa. Para piorar a situação, o papa Bonifácio VIII estava furioso com a autonomia dos priores de Florença, que desafiavam sua autoridade. Daí em diante, o futuro de Dante seria nada promissor.
Em 1301, forças francesas estavam às portas de Florença. Diante da ameaça, Dante foi ao Vaticano pedir ao papa que convencesse o exército francês a não ocupar a cidade. Mas Bonifácio VIII não tinha a mínima intenção de ajudar. Na verdade, ele iria apoiar a invasão. A comitiva de Dante foi liberada, mas o papa o obrigou a ficar no Vaticano. O pontífice temia que, se retornasse a Florença, o poeta poderia denunciar sua aliança com a França.
Na ausência de Dante, os franceses entraram na cidade e permitiram que os neri, opositores de Dante, retomassem o poder. No início de 1302, depois de se recusar por duas vezes a se apresentar diante do novo governo florentino, Dante teve seus bens confiscados e foi condenado ao exílio e à morte (caso fosse encontrado no exterior por soldados de Florença). “O banimento para o resto da vida foi justificado com falsas acusações de corrupção”, afirma Jeffrey Schnapp, professor de Literatura na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. “Dante era uma figura muito proeminente para algum dia voltar à cidade enquanto seus inimigos estivessem no poder.”
Em tempos sem telefone, internet ou mesmo um serviço de correio regular, ser desterrado era uma punição gravíssima. “Para o mundo pré-moderno, não havia punição mais severa do que o exílio. Em um sentido muito real, era uma sentença de morte em um tempo em que a mobilidade – de capital, pessoas, poder – era extremamente limitada”, diz Schnapp. Os anos de exílio foram amargos. Dante nunca mais viu sua mulher e apenas muitos anos depois conseguiu reatar contato com seus filhos.
Logo depois da expulsão, o poeta iniciou uma campanha para juntar tropas com o objetivo de retomar o poder sobre Florença, mas acabou desistindo da idéia. A partir daí, miserável, vagou de cidade em cidade, entre elas Pádua, Verona e Lucca. “Ele literalmente mendigava e oferecia seus serviços nas cortes de vários senhores no norte da Itália: como secretário, escrivão de documentos, embaixador etc.”, afirma Giuseppe Mazzotta.
Em 1310, o líder do Sacro Império Romano, Henrique VII de Luxemburgo, estava prestes a invadir a Itália. Dante viu no maior adversário do papa um possível libertador de Florença. Para ajudá-lo, iniciou uma campanha, escrevendo cartas públicas em que incitava o imperador a atacar sua cidade natal. Seu objetivo não era que Florença fosse destruída, apenas que seus inimigos fossem expulsos do poder. Mas o teor dos textos não agradou em nada os florentinos. Com a ameaça de invasão, o governo de Florença perdoou a facção dos bianchi, permitindo o retorno de todos eles. Com exceção de um: Dante Alighieri.
 Quando Henrique VII morreu, em 1313, as últimas esperanças que Dante tinha de retornar a Florença terminaram. Segundo Karl Kossler, autor de An Introduction to Dante and His Times (“Uma introdução a Dante e seu tempo”, inédito no Brasil), a morte do imperador foi o episódio mais doloroso da vida do poeta, superando até a morte de Beatriz. Segundo Kossler, foi após esse acontecimento que o poeta pôs-se a escrever o livro que chamou de Comédia – e que só ganharia o adjetivo “divina” no século 16.
Antes de morrer, contudo, Dante teve duas chances de ser perdoado. A primeira proposta dizia que ele poderia retornar a Florença, desde que aceitasse pagar uma multa e participar de uma cerimônia religiosa em que seria tratado como inimigo público. Dante preferiu o exílio. Da segunda vez, propuseram revogar sua sentença de morte. Em troca, o poeta deveria jurar que jamais pisaria em Florença novamente. Dante deu de ombros. Como punição, o exílio se estendeu a seus filhos. Expulsos da cidade, eles, pelo menos, tiveram a oportunidade de se reencontrar com o pai.
Dante passou os últimos três anos de sua vida em Ravena. Ali terminou a Divina Comédia e morreu aos 56 anos, em setembro de 1321, provavelmente de malária – naquela época, uma doença comum e misteriosa (ninguém sabia que era transmitida por mosquitos). Começou a ser reconhecido apenas um século depois de sua morte. Mas o culto em torno dele como o maior poeta da língua italiana é mais recente. “A grande onda da influência cultural e literária de Dante ocorreu no século 19 e no início do século 20, englobando o movimento romântico e o período do alto modernismo”, afirma Ronald Martinez. “Desde as duas grandes guerras, Dante se tornou um autor para quem leitores e escritores se voltam a fim de conhecer os estados extremos do sofrimento humano.”
O desterro de Dante é uma espécie de pedra no sapato dos florentinos até hoje. A cidade se ressente por não ter conseguido reaver os restos mortais de seu cidadão mais ilustre. Como forma de se redimir, há estátuas dele espalhadas pela capital da Toscana. Mas há quem, mesmo concordando com a genialidade do poeta, ainda insista em condená-lo. “A cada 100 anos, os florentinos fazem um julgamento, uma espécie de debate público, para decidir se Dante realmente merecia ou não ser condenado ao exílio. E eles sempre decidem que seus ancestrais estavam certos em expulsá-lo de Florença, confiscar seus bens e tentar matá-lo”, afirma Giuseppe Mazzotta. Talvez eles tenham razão. Se a vida do poeta não tivesse sido um inferno dantesco, coroado pelo exílio, provavelmente a Divina Comédia jamais tivesse sido escrita.
A Divina Comédia narra a viagem de Dante em busca de sua falecida amada, Beatriz. Ao atravessar Inferno, Purgatório e Paraíso, ele encontra as almas de amigos, inimigos e personagens históricos. A narrativa se passa em 1300: começa na Sexta-feira Santa e vai até pouco depois do Domingo de Páscoa. Na hora de escolher os personagens condenados aos nove níveis – ou “círculos” – do Inferno, Dante não poupou nem as pessoas de quem gostava. Brunetto Latini, seu respeitado mestre, por exemplo, surge no sétimo círculo. O poeta romano Virgílio, admirado por Dante, também foi colocado no Inferno, na companhia do filósofo grego Platão. Mas pelo menos ambos estão no Limbo, o primeiro círculo, onde ficam as almas dos virtuosos que não eram cristãos (os dois nem poderiam sê-lo, pois morreram antes do nascimento de Jesus). Quem não podia ficar de fora do Inferno era o papa Bonifácio VIII, um dos responsáveis pelo exílio do autor. Depois de achar Beatriz no Purgatório, Dante segue com ela para o Paraíso. Lá, encontra santos e figuras do cristianismo. Sobrou um lugarzinho também para Henrique VII de Luxemburgo, que governou o Sacro Império Romano e foi a última esperança que o poeta teve de voltar para Florença.

Inspiração islâmica?
História tradicional muçulmana pode ter ajudado Dante a criar sua obra-prima

Há quem diga que, mesmo tendo sido escrita por um católico convicto, a Divina Comédia traz referências tiradas da mitologia islâmica. Essa possibilidade foi levantada pelo historiador espanhol Miguel Asín Palácios no livro La Escatologia Musulmana en la Divina Comedia (“A escatologia muçulmana na Divina Comédia”, inédito no Brasil), publicado em 1920. A idéia pareceu um absurdo para os leitores cristãos – afinal, na Divina Comédia, Maomé aparece no oitavo círculo do Inferno. Mas, de acordo com Palácios, a história escrita por Dante se parece com a da Viagem Noturna de Maomé. Nela, segundo a tradição muçulmana, o profeta teria passado uma noite viajando pelo Inferno e pelo Céu ao lado do anjo Gabriel e falado com Abraão, Moisés e Jesus. Na década de 40 foram descobertas versões dessa história em latim, que circularam no século 13. Isso reforçou a suspeita de que Palácios poderia ter razão. Mas, até hoje, não há provas conclusivas de que Dante tenha se baseado nesse texto.

Exílio eterno
Dante foi enterrado em Ravena, que se recusa a devolvê-lo a Florença

“Retornarei poeta e na fonte do meu batismo receberei a coroa de louros.” Essa frase, tirada da Divina Comédia, mostra que Dante acreditava que ainda voltaria, aclamado por seus conterrâneos, à sua cidade natal. Mas ele morreu longe de Florença e foi sepultado sem muitas honras na igreja de São Francisco, em Ravena. No século 15, quando a Divina Comédia começava a ganhar fama, um admirador do poeta construiu uma sepultura numa capela anexa ao templo. Lá, Dante foi enterrado sob a inscrição: “Florença, mãe de pouco amor”. Essa acusação se manteria verdadeira até 1829. Foi quando a cidade do pai da língua italiana resolveu se redimir e construiu um belo túmulo em sua basílica, passando a reivindicar os restos mortais de Dante. Ravena, entretanto, não permitiu a mudança. Segundo Giuseppe Mazzotta, da Universidade de Yale, restou a Florença financiar o óleo da lamparina que queima em cima da sepultura. Ravena, por sua vez, diz estar respeitando a vontade de Dante: ele queria retornar a Florença com honras. Mas em vida.

*GUSTAVE DORÉ é o autor de algumas das mais impressionantes gravuras de todos os tempos, como as ilustrações para a Bíblia e a Divina Comédia. Francês, nasceu em 1832 e morreu em 1883.


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