sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

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O calor é como mais uma pessoa de quem preciso me desvencilhar enquanto sigo pela plataforma. Subo no trem, embora não saiba se devo fazê-lo. Fico sentada entre os passageiros, tensa, seguindo com o vagão e com as pessoas da minha vida antiga para a nova. O interior do trem está frio e dá uma sensação estranha de vazio, apesar das pessoas, apesar do dia abafado lá fora, e esse vazio me acalma um pouco. Ninguém aqui sabe a minha história, sou finalmente anônima, como se não estivesse aqui de verdade, mas estou, consigo perceber, o banco debaixo de mim é sólido, os fundos das casas passam pela janela. Eu consegui.
É engraçado como é fácil quando a questão se resume a acordar da vida que você leva e começar uma nova. Tudo de que se precisa é ter dinheiro suficiente para recomeçar e determinação para não pensar nas pessoas que está deixando para trás. Tentei não olhar hoje de manhã, tentei simplesmente sair, mas no último segundo me vi atraída para o quarto dele e fiquei observando-o dormir, como um recém-nascido, na verdade, ainda sem despertar para o primeiro dia do resto de sua vida. Eu não podia arriscar nem sequer uma espiadela no quarto onde Charlie dormia, eu sabia que o acordaria, que isso me impediria de ir, então girei a tranca silenciosamente e deixei os dois para trás.


A mulher ao meu lado está tendo dificuldade com o café. Ela usa um terninho escuro e tem aparência profissional, um pouco como eu era. Ela está tentando tirar a tampa de plástico do copo, se mantém grudado mas ela continua puxando até que a tampa sai com um tremor e o café quente espirra em nós duas. Ela pede desculpas em voz alta, mas eu só balanço a cabeça indicando que ela não se preocupe e olho para o meu colo, sabendo que deveria estar limpando as manchas escuras da jaqueta de couro cinza (vai estragar a jaqueta, é estranho eu não limpar), mas a erupção de café me irritou um pouco, e as lágrimas quentes se misturam com as gotas de café, e rezo para ninguém reparar se eu não levantar o rosto.
Agora me arrependo de não ter parado para comprar um jornal, mas me pareceu inapropriado ir até uma banca e entrar numa fila de pessoas normais no dia em que eu estou fugindo. Fico aqui sentada no trem e sinto falta de um jornal, sinto falta de ter aquele amontoado de palavras nas quais mergulhar, nas quais me concentrar, com as quais afastar os pensamentos ruins da cabeça. Fico agitada nem ler, sem nada para fazer a não ser olhar pela janela e desejar que as pessoas afastem o olhar. Observo com tristeza Manchester ficar para trás e me dou conta de que talvez jamais volte a vê-la, a cidade que um dia eu amei. O trem passa por campos queimados pelo sol e por um vilarejo desconhecido e, apesar de estarmos indo rápido agora, a viagem parece interminável, meu corpo tem vontade de se levantar e fugir, mas para onde? Já estou fugindo.

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