segunda-feira, 3 de junho de 2013



Em 23 de fevereiro de 1981, o futuro da Espanha ficou em suspenso por algumas horas. Durante a eleição do presidente que daria continuidade à redemocratização do país – depois de mais de trinta anos de ditadura franquista e de um governo de transição com Alfonso Suárez –, a câmara dos deputados, em Madri, foi tomada de assalto por guardas civis liderados pelo tenente-coronel Antonio Tejero, que interromperam a votação de seu novo líder dando notícia de um golpe de Estado. O “23-F”, como ficou conhecido, fracassaria já no começo do dia seguinte, mas isso não impediu que o episódio ficasse marcado na história do país: as filmagens oficiais foram parcialmente transmitidas pela televisão estatal e se incorporaram à memória coletiva do povo espanhol.
A partir do gesto simples do ex-presidente Suárez, de permanecer sentado na câmara em meio a uma saraivada de tiros, o escritor Javier Cercas constrói seu mais novo romance, Anatomia de um instante, traduzido para oito línguas e vencedor do Prémio Nacional de Narrativa (Espanha) de 2010 e do Prêmio Salone Internazionale del Libro (Torino, Itália), em 2011, entre outros. “O realmente enigmático não é aquilo que ninguém viu, mas aquilo que todo mundo viu e ninguém consegue entender por completo”, propõe Cercas, indagando-se a respeito do significado do gesto de Suárez, que ampara toda a narrativa do livro.
Abrindo mão de uma historiografia que se fixa em versões oficiais coerentes, o escritor tece uma trama complexa de eventos que rodeiam o 23 de fevereiro. Retrata os diferentes personagens e esmiuça as múltiplas motivações do golpe, tecendo um livro híbrido, entre o romance e o ensaio.
A conjuntura política que levaria ao dia fatal se distende em histórias de cada um dos principais agentes, formando o que chama de “placenta” do golpe; as expectativas de Suárez no governo de transição tornam-se mais densas à luz de sua trajetória política; as dúvidas a respeito da participação do serviço de inteligência ecoam; a relação do então presidente com seu homem de confiança, o general Gutiérrez Mellado, ganha contornos íntimos na narrativa que abarca sua convivência em La Moncloa, sede da presidência; relatórios, telefonemas, alianças, reuniões sucedem-se em uma narrativa tensa e reflexiva, de forma que o livro, apoiado em fatos históricos já conhecidos, alcança uma dimensão romanesca por seu tratamento literário.
“Com traços da não ficção de Truman Capote, mas marcado pelo envolvimento emocional com o passado de W.G. Sebald”, “com elementos de estranheza e acaso que já inspiraram Plutarco e Shakespeare”, como destaca a crítica internacional, Anatomia de um instante analisa literariamente as entranhas do poder, questionando a todo momento o lugar da ficção da História – com H maiúsculo.

O autor
Javier Cercas nasceu em Ibahernando (Espanha), em 1962. Além de escritor e tradutor, é professor de literatura espanhola na Universidade de Girona e colaborador do jornal El País. Lecionou durante dois anos na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, período durante o qual publicou sua primeira obra, o livro de contos El móvil, em 1987. Atualmente com dez livros publicados, Cercas vem se destacando entre os novos autores espanhóis. Anatomia de um instante (2009), seu mais recente trabalho, foi traduzido para oito línguas e recebeu, entre outros, o Prémio Nacional de Narrativa (Espanha), em 2010, e o Prêmio Salone Internazionale del Libro (Torino, Itália), em 2011. Foi indicado pela revista The New Yorker como um dos principais livros de 2011. Soldados de Salamina, editado pela Globo Livros, foi seu primeiro livro publicado no Brasil e está sendo relançado pelo selo Biblioteca Azul.

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