sábado, 15 de junho de 2013

E a uma conclusão: Nilza Rezende conhece como poucos a alma feminina.
 
Depois da aclamada estréia literária com Um Deus dentro dele, um diabo dentro de mim, a carioca Nilza Rezende retorna com um romance carregado de emoção. Um livro sobre a força das palavras e a dor do verbo, que a confirma como uma das mais versáteis escritoras de sua geração. Em Bocas de mel e fel, ela escolhe um estilo denso, claustrofóbico, verborrágico — com o qual já flertara emElas querem é falar, sua experiência no universo do conto — para narrar os tormentos de um brilhante advogada que perde a voz. E os dois homens de sua vida.
Aqui, sua audácia estilística aliada a uma maneira corajosa de expor as perplexidades e loucuras diante das armadilhas da vida amorosa resulta numa trama densa e plúmbea. A autora consegue retratar de forma intensa os sentimentos universais vividos por uma mulher que luta para atender as expectativas da família, de si mesma e de seus amantes. Em um tom confessional, Irene nos fala da paixão avassaladora por Antonio, um primo do interior, considerado insuficiente para uma mulher de seu nível; e do relacionamento com Pablo, professor universitário. Argentino e sem amarras.  Veja entrevista.


Antonio, que jamais saiu da cidade pequena onde nasceu, oferece um amor incondicional. De uma fidelidade quase canina, espera por Irene, em meio às lembranças de momentos fugidios, roubados de sete em sete anos. Um pacto que os dois mantém com o zelo e a certeza de que no sigilo repousa a possibilidade de seu amor. Pablo Hernandez é um intelectual, homem do mundo, rodeado de mulheres, frases de efeito, certezas ondulantes e uma violência latente.
Bocas de mel e fel oscila entre as características desses dois heróis. Ou antiheróis. Em um conjunto de reflexões e lembranças que Irene, em meio ao estresse emocional de perder a voz, seu instrumento de trabalho, sua definição, não se preocupa em expor linear ou logicamente. Nesse ziguezague de acontecimentos, vemos a mulher em busca do próprio caminho. Ao seguir suas viscerais elucubrações, chegamos a um final surpreendente. 



Entrevista - Boca de mel e fel

A doçura e a amargura de amores distintos e que se completam estão no novo 
romance de Nilza Rezende, Bocas de Fel e Mel, em que a protagonista Irene reflete sobre sua vida com Antonio, um primo que vive no interior, e Pablo, o sofisticado intelectual com quem se casou. Enquanto Irene se desdobra para atender aos dois amantes em diferentes momentos da vida, ela reflete sobre o papel de cada um em sua trajetória e suas próprias escolhas. O romance é inspirado em vivências de Nilza, que se revela exigente com o destino exato de cada vocábulo do texto. Ainda que essa saudável obsessão demande tempo, o argumento é imbatível: ‘Não me desespero porque Saramago começou a escrever com 60 e tantos anos".

-Um amor de juventude e um amor da maturidade que se enredam ao mesmo tempo. Seriam esses amores uma representação do ideal romântico?
 Por que você não criou um terceiro personagem que pudesse juntar a paixão de Antonio e o intelecto de Pablo?
A vida tem muitas pontas, de repente a gente vai puxando uma coisa aqui, outra ali. Tem hora que dá pra conciliar, tem hora que não dá. Irene sabia que o erotismo estava com Antonio e que a afinidade intelectual estava em Pablo. Ela não tinha a menor expectativa de juntar isso. Acho que é isso que o livro traz de diferente: não é um triângulo amoroso clássico. Ela não quer escolher. Não há maniqueísmo, eles não são rivais. Não há antagonismo. São dois encontros, e desses dois encontros a protagonista faz a sua vida. Aliar Antonio e Pablo num único personagem seria absurdo. Conciliar o inconciliável, nesse sentido, seria uma proposta romântica, da qual o livro pretende fugir.

-O homem ideal não existe?
Para mim, não é só o homem ideal que não existe – isso seria muito simplista, o ideal é que não existe. Não escrevi pensando nisso, não... pelo contrário. Irene não quer escolher, ela sabe que não é um ou outro, ela sabe que as coisas são mais confusas, mais complexas, mais diluídas, imprecisas e arrebatadoras do que parecem. Amor completo? Felicidade completa? Realização completa? Ilusões. Acho que nosso tempo é da incompletude, da confusão, da imprecisão, da fragmentação, das incertezas – não dá mais pra ficar querendo achar o “amor completo”, isso é conversa pra adolescente... A vida é muito mais que isso. Há de se comer a felicidade pelas bordas.

-A trama, tão contemporânea, lida com posse, com ciúme, com segredo e, principalmente, com a busca do amor completo. A história poderia ser passada em outras épocas?
Tive esse desejo: de escrever uma história que pudesse ser passada em outras épocas e em outros lugares. O amor, o erotismo, o triângulo amoroso sempre existiram na literatura, porque sempre existiram na vida. A literatura é o contraponto da vida, e vice-versa. Acho que Bocas de mel e feltoca em questões que ultrapassam limites geográficos, temporais etc. São sentimentos universais. Aliás, isso é um trunfo característico da literatura: por que livros continuam a nos interessar séculos depois, livros escritos em países que nem conhecemos, por tempos tão diferentes dos nossos? Porque eles tocam a alma.

-Irene é uma mulher "realizada" aos olhos da sociedade, mas, no íntimo, está procurando, o tempo todo, satisfazer a quem a cerca. Ela é a mulher real, que ainda hoje procura agradar e servir a todos?
Irene é uma advogada bem-sucedida – e não havia razão para não ser. Foi criada nesse meio, era o que esperavam dela, fez o caminho previsto. Até que chega um momento em que ela percebe que esse caminho não era o que ela queria fazer, ela não era ela, e aí... Acho que a gente vive isso, homens e mulheres. As famílias de certa forma preparam um destino pra você... e você quer corresponder às expectativas. Não só profissionalmente, mas afetiva e emocionalmente. Tenho uma sobrinha que me diz que ela nunca divide as tristezas com a mãe, porque sabe que a mãe ficaria muito deprimida se percebesse que ela não é tão feliz como parece ser... Ou seja, é difícil você se libertar dessa couraça, desse “destino” que te traçam e, sobretudo, da história que você escreve para você mesma. É possível? É possível sair disso e fazer uma outra história, e viver sem pressões, interferências etc? Essa é a questão, me parece. Não é ser ou não ser, é ser e não ser: é mel e fel, ao mesmo tempo.

-Como surgiu a ideia para o romance, contrapondo o amor da juventude com o da maturidade, o homem do campo com o urbano?
Muitas coisas me levaram a este livro... Houve uma vez, um verão, um primo, uma paixão de criança... Houve o livro de Gabriel Garcia Marques, “Memória de minhas putas tristes”, um livro com uma história “bobinha”, digamos, mas que a forma de contar é de uma força incrível; houve aquela expulsão do Zidane, na copa de 2006, quando ele perde o controle e dá uma cabeçada no jogador italiano que o havia xingado e que continua a jogar normalmente como se não tivesse feito nada... houve minha volta à PUC para fazer mestrado e aí o contato com professores com um discurso muito acadêmico... há a vida por aí, os prazeres, as afinidades, os desejos... e no meio disso tudo há ela, a palavra, as palavras que nos dizem e as que dizemos... a repercussão disso na nossa vida. É um livro sobre isso, sobre a força da palavra.

-Quanto tempo você levou preparando este livro?
Comecei a escrever este livro logo depois de lançar Dorme, querida, tudo vai dar certo. Ou seja, em 2005. Escrevi o início e parei. Foi difícil escrever, porque mais que contar uma história, me interessava a forma de contá-la. Eu queria mais que uma história de sedução, eu queria uma linguagem sedutora, uma linguagem que arrastasse o leitor do início ao fim do livro, que o seduzisse ao pé do ouvido Por isso, demorei. Trabalhei frase a frase, página a página. Foi o livro mais difícil pra mim. Porque parece que Bocas de mel e fel está falando de um triângulo amoroso, mas ele se propõe a mais: a falar da vida e da morte, do corpo e da alma, da bondade e da crueldade, das palavras que nos fazem bem e das que nos machucam profundamente. Tudo na vida é mel e fel, as coisas não são tão dissociadas assim, e foi isso que tentei captar. O que é a nossa vida? Quanto dela é fruto do que nos dizem? O destino é de fato inesperado assim? – são questões que o texto suscita.

-Você tem algum hábito, horário, local para escrever?
Adoraria, mas é difícil. Tenho muitas atividades, sou professora, sou pesquisadora da PUC, coordeno clubes de leitura... tenho filho, casa, cachorro... e tem a praia aqui perto... é difícil ter esse canto e essa hora, embora ache indispensável ao escritor sossego. Não consigo escrever em qualquer lugar, a qualquer hora. Preciso estar com o meu computador, preciso estar sozinha. Escrever não é liga e desliga. É um trabalho demorado, elaborado, de detalhe, que exige tempo e disponibilidade. Por isso, escrevo em geral à noite, quando o mundo está mais sossegado, ou nos fins de semana, quando não tenho de sair correndo...

-Escrever é reescrever, mas como é seu método? As palavras surgem ou você planeja a história completa antes de levá-la ao papel?
Escrevo e reescrevo, incessante e incansavelmente. Não mudo para a frase seguinte se aquela não está como quero, não tem ainda o ritmo que quero. Vou e volto, loucamente. Não sei a história toda de início. Aliás, é curioso. Escrevi Bocas de mel e fel, o livro tinha um final, mas ninguém entendeu. Para mudar o final, reescrevi boa parte do livro. Gosto desse trabalho, sou perfeccionista, exigente. Não passo por cima, nem quando estou escrevendo um simples cartão. Se preciso, escrevo de novo, sou meio obsessiva. Acho que todo escritor é: a palavra tem muito poder, você tem que buscar a palavrinha certa, pro lugar certo. Desconfio de quem diz que escreveu um livro numa noite... Pra mim é impossível: escrever não é uma coisa que se faz rapidinho... exige burilar, pescar, colher, brilhar, arrumar, enfeitar, embrulhar...

-Quando você descobriu que seria escritora? Quanto de você está em suas histórias?
Sempre gostei de escrever. Na escola, eram as minhas “redações” aquelas que o professor exibia. Minhas amigas copiavam as cartas que eu escrevia para os meus namorados e mandavam para os delas... Ou seja, sempre gostei de escrever e sempre as pessoas gostaram do que escrevo. Mas não digo até hoje que sou escritora... Não me sinto assim, não vivo disso, é quase um sonho romântico. Não me desespero porque Saramago começou a escrever com 60 e tantos anos... ou seja, há tempo e há um tempo pra isso...
Tudo que escrevo tem a ver com o que vivi, seja de uma forma mais explícita ou não. Não saberia escrever de outra forma. Não escrevo sobre guerras, porque não as vivi; escrevo sobre sentimentos, sobre o amor, sobre nossos desejos e frustrações, sobre esse mel e esse fel que experimentamos dia a dia. Sou uma pessoa intensa, muitos namorados já me largaram por causa disso... sou passional, impulsiva, “tempestuosa”, como dizia minha mãe. Não sou água de aquarela. Vivo tudo de forma intensa, e de alguma forma minha escrita revela isso. Muito de mim está lá, mesmo quando eu escrevo sobre uma personagem que não sou eu, como é o caso de Irene. Mas é mera embalagem, o corpo dela não é o meu, mas a alma... hum, a alma...

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