terça-feira, 14 de agosto de 2012

Livro para quem ama literatura e cheio de sensibilidade



“O Mestre das Iluminuras“, romance de estréia da americana Brenda Rickman Vantrease, se desenrola na Inglaterra do século XIV, época de dupla opressão sobre as camadas sociais, de um lado por parte do Rei, do outro pela Igreja, com impostos, dízimos e ameaças diversas pairando sobre suas cabeças. A trama, que se desdobra em torno de Finn, o Mestre de Iluminuras, revela um mundo regido pelo masculino, completamente enraizado no patriarcalismo, no qual as mulheres não têm voz nem vez, seja qual for sua posição social. Ironicamente, porém, as páginas deste livro são povoadas por personagens femininas marcantes, como a Senhora de Blackingham, Kathryn – viúva que se encontra em sérias dificuldades financeiras e hospeda em sua casa o iluminador e sua filha Rose, em troca de um alívio nas finanças, – e Julian de Norwich – mística reclusa.

Neste momento conturbado da História, o clero tem o monopólio da salvação das almas e responde por Deus perante os homens. Os textos sagrados são propriedades exclusivas da Igreja, escritos apenas em latim ou francês normando, língua dos nobres, e tão somente interpretados pela hierarquia clerical. Os livros são raros e copiados à mão pelos monges, decorados com luxo e requinte por iluminadores, refletindo assim o poder e a vaidade de padres, bispos e arcebispos. Estes mergulham cada vez mais na riqueza material, na ganância, na vida indisciplinada, regada a fartos banquetes e orgias...


O Bispo Despenser, mais conhecido como o Bispo Guerreiro, pela forma violenta como debelou a Revolta dos Camponeses de 1381, jovem, imaturo e mimado, é a figura que condensa toda a extravagância e a tirania do clero neste período. Em uma passagem brilhante e crua, a descrição da comemoração da Noite de Reis, a autora se supera ao retratar como, durante a exibição de uma farsa, os artistas recriam, diante da nobreza e do clero, uma imitação irônica do comportamento de seus membros, impregnada de ódio e desprezo. Nesta Festa da Epifania, o profano e o sagrado se mesclam, o mundo vira de cabeça para baixo, e por uma noite invertem-se posições e hierarquias sociais. As camadas inferiores vão à forra, mas o público presente parece não se importar com essa transgressão, e se inebria de prazer ao ver diante de si o espelho de suas ações, como predadores que se deleitam diante de suas presas, da exibição de suas conquistas.

A narrativa mistura ficção e história. Ao lado dos personagens criados pela imaginação da autora desfilam figuras históricas, como Julian de Norwich, o Bispo Henry Despenser, John Ball, julgado e enforcado por conta da sua defesa ardente de uma sociedade sem classes, e John Wycliffe, teólogo e professor da Universidade de Oxford. Em 1379, o mestre desencadeia forças que conduzem mais adiante à Reforma Protestante, movimento contestador dos abusos cometidos pela Igreja. Ao escrever em inglês, a linguagem da plebe, Wycliffe torna as Escrituras acessíveis para qualquer um, e prega que todos podem chegar a Deus sem a intervenção da Igreja, ou seja, cada homem pode ser seu próprio padre.

Julian nasce em 1342 e morre em Norwich, Inglaterra, em 1423. Beneditina e reclusa nesta cidade inglesa, ela experimenta dezesseis revelações. Seu livro, “Revelações do Amor Divino”, no qual ela retrata suas visões, a transforma em uma das mais importantes escritoras da Inglaterra. Ela é responsável por algumas das passagens mais belas e poéticas, ao descrever suas visões do Mestre. A autora vai além da imagem tradicional de uma santa, mergulha em sua alma e revela suas angústias, inquietações e dúvidas.

È neste cenário da Inglaterra feudal, no qual valores e conceitos tradicionais são subitamente contestados, antigas noções de honra e fidelidade são desafiadas, que se desenrola esta trama de amor, traição, arte e religião. Finn é um personagem enigmático e ambíguo, mais complexo do que parece. Aparentemente um cavaleiro à moda antiga, ele traz em si uma face sombria, misteriosa, e logo se percebe que o Mestre de Iluminuras vive uma vida dupla, que pode custar sua própria vida, colocar em risco sua filha Rose, e os que se envolvem com ele, como Kathryn, seus filhos, Julian, a anacoreta reclusa na Igreja de Saint Julian, e seu melhor amigo, o anão Meio-Tom. Em um universo saturado de preconceitos e discriminações, o segredo de Finn pode detonar uma explosão em cadeia à sua volta.

Lady Kathryn também tem seus próprios temores e mistérios, e em nome do bem-estar dos filhos é capaz de sacrificar sua própria felicidade. Ao lado de Finn, é uma das personagens mais marcantes desta narrativa. Proprietária de Blackingham, ela é pressionada de um lado pela Igreja, que ambiciona seus bens, e de outro pelo xerife, Sir Guy de Fontaigne, típico representante do poder local, de olho em suas terras. Além disso, tem que lidar com a ganância de seu capataz e com seus próprios sentimentos, ao mesmo tempo em que luta para manter sua família unida e os antigos laços de fidelidade de seus servos. Neste retrato de uma época, Brenda Vantrease também aborda os poderes femininos, como o de Agnes na cozinha e o de Magda na leitura das almas, o de Rose nas artes e o de Julian em suas visões. A escritora realiza uma pesquisa histórica minuciosa, e traduz esse conhecimento em uma narrativa vibrante, eletrizante, que prende do princípio ao fim do livro, mesmo nas esferas mais descritivas da trama.

Brenda Rickman Vantrease é ex-professora de inglês e bibliotecária aposentada. Doutorada em Inglês pela Middle Tennessee State University, a escritora estréia no mundo da ficção com esta trama que aborda justamente a Escrita. Ela mergulha fundo na História, revelando como ela pode se tornar um instrumento de opressão e submissão dos que a ela não têm acesso. E expõe até que ponto a Escrita é capaz de se tornar um instrumento de poder, mas também o quanto ela pode ser libertadora, transformando-se muitas vezes no único caminho para a salvação, no encantamento que dissipa as sombras e produz a luz.

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