quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Um assassinato no Vaticano é só o primeiro passo para uma catástrofe e que irá abalar a religião mundial
  Após quase ser morto em sua última missão, o ex-agente israelense Gabriel Allon não quer mais pensar no serviço de inteligência. Dedicando-se a seu trabalho como restaurador de arte, ele se refugia no Vaticano para dar nova vida a uma das maiores obras-primas de Caravaggio.
Certa manhã, ele é chamado à Basílica de São Pedro pelo monsenhor Luigi Donati, o poderoso secretário pessoal do papa Paulo VII. Sob o magnífico domo de Michelangelo, jaz o corpo de uma linda mulher. A polícia suspeita de suicídio, mas Donati não acredita nessa hipótese e pede a Gabriel que investigue discretamente o caso. Ele só recomenda
que Allon fique atento à regra número um do Vaticano: “Não faça perguntas demais.”
Gabriel logo fica sabendo que a mulher descobriu segredos perigosos que ameaçam uma organização global envolvida com o comércio ilegal de antiguidades. Sem saber aonde sua caçada o levará, ele precisa impedir
um atentado devastador que mergulharia o mundo em um conflito apocalíptico.
Uma inebriante mescla de arte, intriga e história, Anjo caído conduz o leitor por câmaras obscuras do Vaticano, pistas de esqui glamourosas de St. Moritz e avenidas graciosas de Berlim e Viena, até alcançar o inesperado clímax nos subterrâneos do território mais sagrado e disputado do mundo.


Anjo caído - Leia trecho do livro...
PARTE UM - Cidade dos Mortos

Vaticano

Foi Niccolò Moretti, zelador da Basílica de São Pedro, quem fez a descoberta,que deu início a tudo. Eram 6h24, mas, por causa de um inocente erro na transcrição, a primeira declaração oficial do Vaticano relatou 6h42.
Foi um dos inúmeros enganos, grandes e pequenos, que levariam muitos a concluírem que a Santa Sé tinha algo a esconder – o que era verdade. De acordo com um notável dissidente, bastava apenas mais um escândalo para a derrocada final da Igreja Católica Apostólica Romana. A última coisa que Sua Santidade precisava naquele momento era de um cadáver no coração sagrado
do cristianismo.
Niccolò Moretti não esperava encontrar nada de incomum naquela manhã, quando chegou uma hora antes de seu horário habitual. Vestindo calças escuras e um sobretudo cinza até os joelhos, ele passou quase invisível pela praça escurecida em direção aos degraus da basílica. Viu luzes à direita, nas janelas do terceiro andar do Palácio Apostólico. Sua Santidade, o papa Paulo VII, já estava acordado. Moretti se perguntou se o Santo Padre teria dormido. Corriam rumores no Vaticano de que ele sofria de uma forte insônia e passava a maior parte das noites escrevendo em seu escritório particular ou andando sozinho pelos jardins. O zelador já o tinha visto num desses passeios. Com o tempo, todos eles perdiam a capacidade de dormir.
Moretti escutou vozes atrás de si e, ao se virar, dois sacerdotes da Cúria se materializaram na escuridão. Estavam entretidos numa conversa animada e não prestaram nenhuma atenção nele enquanto seguiam para as Portas de Bronze, desaparecendo em meio às sombras. As crianças de Roma os chamavam de bagarozzi
– besouros pretos. Moretti tinha usado essa palavra uma vez na infância e fora repreendido por ninguém menos que o papa Pio XII. Desde então, nunca a repetira. Quando uma pessoa é castigada pelo vigário de Cristo, pensou Moretti, a transgressão raramente se repete.
Ele subiu os degraus da basílica e passou pelo pórtico. Cinco portas levavam à nave e todas estavam trancadas, com exceção da última à esquerda, a Porta da Morte. À soleira, se encontrava o padre Jacobo, um clérigo mexicano bem magro com cabelos brancos e finos. Ele abriu caminho para Moretti e em seguida fechou a porta, trancando-a com uma barra pesada.

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– Voltarei às sete para deixar seus homens entrarem. Tenha cuidado lá em cima, Niccolò. Você não é mais tão jovem. O padre se retirou. Moretti molhou os dedos na água benta e fez o sinal da
cruz antes de seguir em frente. Outras pessoas teriam parado no centro da igreja, embevecidas, contemplando a construção, mas ele avançou naturalmente, como se estivesse entrando na própria casa. Sendo chefe dos sampietrini, os zeladores oficiais da basílica, havia 27 anos que ele ia ali seis vezes por semana. Era por causa de Moretti e de seus subordinados que ela brilhava com as luzes celestiais, ao contrário das outras grandes igrejas da Europa, que mantinham sempre um ar sombrio. Moretti se considerava não apenas um servo do papado, mas também um parceiro no empreendimento. Os papas carregavam a responsabilidade por um bilhão de almas católicas, mas era Moretti quem cuidava da poderosa basílica, símbolo do poder terreno dos pontífices. Ele conhecia cada centímetro do prédio, do topo do domo de Michelangelo às profundezas da cripta – todos os 44 altares, as 27 capelas, oitocentas colunas, quatrocentas estátuas e trezentas janelas. Sabia onde estavam as rachaduras e vazamentos, quando a basílica estava bem e quando sentia dores. Ela sussurrava no ouvido de Niccolò Moretti.
Diante da grandiosidade da Basílica de São Pedro, os meros mortais pareciam encolher. Em seu caminho até o altar papal, vestido com o uniforme cinzento, Moretti se assemelhava a um pequeno dedal. Ele se ajoelhou perante o Confessio e olhou para o alto. Trinta metros acima, estava o baldaquino: quatro colunas rebuscadas de bronze e ouro coroadas por uma abóbada magistral. Naquela manhã, um andaime de alumínio o ocultava parcialmente. A obra-prima de Bernini, com suas imagens ornamentadas e ramos de oliva e louro, era um ímã para poeira e fumaça. Todo ano, uma semana antes do início da Quaresma, Moretti e sua equipe faziam uma limpeza completa. O Vaticano era palco de rituais atemporais, e também havia um ritual nesse trabalho. Uma vez que o andaime estivesse em seu lugar, Moretti era sempre o primeiro a escalá-lo. A vista lá de cima fora contemplada por pouquíssimas pessoas – e o chefe dos sampietrini exigia esse privilégio.
Moretti alcançou o topo da coluna frontal, prendeu a correia de segurança e seguiu engatinhando, devagar, até a inclinação da abóbada. Bem no cume do baldaquino, havia um globo apoiado em quatro pilares e encimado por uma cruz. Esse era o local mais sagrado da Igreja Católica, o eixo vertical que seguia do centro do domo direto para a tumba de São Pedro. Ele representava a base da instituição. Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja. Quando a aurora começou a iluminar o interior da construção, o fiel servo dos papas quase pôde sentir o dedo de Deus tocar seu ombro.

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Como sempre, Moretti perdeu a noção do tempo. Mais tarde, ao ser questionado pela polícia do Vaticano, ele não seria capaz de lembrar exatamente quantos minutos passara ali antes de ver a coisa pela primeira vez. De sua perspectiva, parecia um pássaro com a asa quebrada. Supôs que fosse um pano abandonado por outro sampietrino, um lenço derrubado por um turista. Eles estavam sempre deixando coisas para trás, pensou, inclusive itens que não tinham propósito nenhum em igrejas.
De qualquer forma, era necessária uma investigação. Como o feitiço já se quebrara, Moretti deu a volta com cuidado e começou a longa descida até o chão. Em poucos passos pelo transepto, se deu conta de que o objeto não era um pássaro nem um lenço. Ao chegar mais perto, conseguiu ver o sangue seco no mármore sagrado de sua basílica e os olhos encarando o domo, vidrados, como
suas quatrocentas estátuas.
– Deus do céu – sussurrou Moretti, andando às pressas pela nave. – Tenha piedade de sua pobre alma. O público pouco saberia dos eventos que se deram logo após a descoberta de Niccolò Moretti, pois eles foram conduzidos de acordo com a rigorosa tradição do Vaticano – em total sigilo e com uma ponta de astúcia jesuítica. Ninguém além das paredes teria conhecimento, por exemplo, de que a primeira pessoa procurada pelo zelador foi o cardeal-reitor da basílica, um alemão exigente de Colônia com um instinto bem enraizado de autopreservação. Ele estava no
Vaticano havia tanto tempo que logo reconheceu naquela situação um grande problema e decidiu não relatar o incidente à polícia, mas, sim, ao verdadeiro mantenedor da lei dentro do Estado papal. Foi por conta dessa decisão que, cinco minutos depois, Niccolò Moretti testemunharia
uma cena extraordinária – o secretário pessoal de Sua Santidade vasculhando os bolsos de uma mulher morta no chão da basílica. O monsenhor removeu um único item e partiu em direção ao Palácio Apostólico. Ao entrar em seu escritório, ele já tinha um plano em mente. Seriam necessárias duas investigações, concluiu, uma para o público e outra para ele próprio. E o sucesso
da sondagem particular dependeria de uma pessoa discreta e de confiança. O secretário escolheu como inquisidor um homem com quem tinha muito em comum. Um anjo caído. Um pecador na cidade dos santos.

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Piazza di Spagna, Roma O restaurador se vestiu em silêncio no escuro, para não acordar a mulher.
A pose em que ela jazia, com o cabelo castanho despenteado e a boca aberta, lembrava o Nu vermelho de Modigliani. Ele colocou uma pistola Beretta carregada na cama, ao lado do corpo dela. Em seguida puxou o edredom, expondo os fartos seios redondos, e a obra-prima estava completa.
Em algum lugar, um sino de igreja soou. A mão dela se ergueu da cama, quente e macia, e puxou o restaurador. Como sempre, a mulher o beijou com os olhos fechados. Seu cabelo cheirava a baunilha e os lábios tinham um pequeno resquício do vinho que ela tomara na noite anterior, num restaurante em Aventine Hill.
Ela o soltou, murmurou algo ininteligível e voltou a dormir. Ele a cobriu, colocou outra Beretta na cintura do jeans desbotado e saiu do apartamento.Lá fora, as ruas da Via Gregoriana reluziam na penumbra como um quadro recém-envernizado. O restaurador parou por um instante na porta do prédio, fingindo consultar seu celular. Levou poucos segundos para localizar o homem que o observava detrás do volante de um Lancia sedã estacionado. Ele deu um aceno amistoso ao sujeito, o mais refinado insulto profissional, e partiu em direção à Igreja de Trinità dei Monti.
No último degrau da Escadaria Espanhola, uma velha gattara jogava pedaços de comida para um bando de gatos romanos magrelos. Com um sobretudo gasto e um lenço na cabeça, a mulher olhou desconfiada para o restaurador, que seguia para a piazza. Ele não era alto – talvez 1,75 metro – e tinha o corpo atlético de um ciclista. Seu rosto era comprido, com o queixo estreito e um nariz esguio que parecia ter sido esculpido em madeira; os olhos de um tom incomum de verde; o cabelo, escuro, mas grisalho nas têmporas. As feições não indicavam uma origem determinada, e seus dons linguísticos lhe possibilitavam tirar proveito dessa característica. No decorrer de uma longa carreira, ele trabalhara na Itália e em outros países assumindo inúmeras nacionalidades e pseudônimos.
O serviço de segurança italiano, ciente de algumas de suas façanhas, tentou evitar sua entrada no país, mas teve que ceder após uma intervenção discreta por parte da Santa Sé. Por razões nunca reveladas ao público, o restaurador estivera presente no Vaticano anos atrás, quando a cidade fora atacada por terroristas is16 lâmicos. Mais de setecentas pessoas haviam sido mortas naquele dia, incluindo quatro cardeais e oito sacerdotes da Cúria. O próprio Santo Padre sofrera um ferimento leve, tendo escapado da morte porque o restaurador o protegera de um míssil e o levara até um lugar seguro.
Os italianos impuseram duas condições em troca do retorno dele – que residisse no país usando o verdadeiro nome e permitisse ser revistado de vez em quando. A primeira foi aceita com alívio. Depois de uma vida inteira em campos de batalha secretos, ele estava ansioso para se livrar das identidades falsas e ter algo parecido com uma vida normal. A segunda, no entanto, se revelou
mais onerosa. A tarefa de segui-lo invariavelmente era assumida por jovens em treinamento. No começo, o restaurador ficou um pouco ofendido, mas logo descobriu que aquilo tudo fazia parte de um curso de especialização nas técnicas de vigilância de rua. De tempos em tempos, ele agraciava os alunos com um sumiço repentino, sempre deixando alguns de seus melhores truques na manga
caso tivesse que usá-los para escapar em algum momento.
E assim ele percorreu as ruas silenciosas de Roma seguido por nada menos que três novatos com diferentes níveis de habilidade. Sua rota impôs poucos desafios e nenhuma surpresa aos perseguidores. Tomou o sentido oeste através do centro antigo da cidade e terminou, como sempre, na Porta de Santa Ana, a entrada de negócios do Vaticano. Por se tratar tecnicamente de uma fronteira internacional, os vigias tiveram que confiar o restaurador aos cuidados da Guarda Suíça, que o admitiu após uma rápida olhada em suas credenciais.
Ele tirou a boina, em um cumprimento de despedida aos novatos, e seguiu pela Via Belvedere, passando pelas paredes cor de manteiga da Igreja de Santa Ana, pelos escritórios de imprensa e pela sede do Banco do Vaticano. Ele virou à direita no posto central de correios e atravessou uma série de pátios até alcançar uma porta sem identificação. Do outro lado, havia um pequeno saguão, onde estava sentado um gendarme dentro de uma cabine de vidro.
– Onde está o oficial de plantão de costume? – perguntou o restaurador, falando em italiano rápido.
– A Lazio jogou com o Milan ontem à noite – respondeu simplesmente o homem, apático.
Ele passou o cartão de identidade do restaurador pelo leitor magnético e fez sinal para ele passar pelo detector de metais. Quando a máquina emitiu um alarme estridente, o restaurador parou e indicou com desânimo um computador.
Na tela, ao lado de sua foto, havia um aviso especial escrito pelo chefe do Escritório de Segurança do Vaticano. O gendarme leu as palavras duas vezes
para garantir que tinha entendido bem e encarou o visitante. Algo na serenidade

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do homem e seu pequeno sorriso malicioso causaram um calafrio no guarda. Ele gesticulou em direção às portas em frente e observou com atenção o outro atravessá-las em silêncio.
Os rumores são verdadeiros, pensou o gendarme. Gabriel Allon, restaurador
de renome de pinturas dos Grandes Mestres, espião e assassino israelense aposentado,salvador do Santo Padre, retornara ao Vaticano. Ele apagou a pasta do computador com um comando do teclado. Em seguida, fez o sinal da cruz e, pela primeira vez em muitos anos, recitou o ato de contrição. Era uma atitude estranha, deu-se conta, porque não havia cometido nenhum pecado além de satisfazer sua curiosidade. Mas aquilo certamente seria perdoado. Afinal, não era todo dia que um policial de baixo escalão do Vaticano tinha a chance de conhecer uma lenda.
Luzes fluorescentes reguladas para a iluminação noturna zuniam um pouco quando Gabriel entrou no laboratório principal de conservação da Galeria do Vaticano. Como sempre, ele foi o primeiro a chegar. Fechou a porta e esperou pelo som reconfortante das travas automáticas, seguindo então por uma fileira de armários até algumas cortinas pretas que iam do chão ao teto, no fundo do aposento. Um pequeno aviso alertava que a área além era estritamente proibida para pessoal não autorizado. Gabriel passou por elas e foi até seu carrinho, onde examinou com cuidado a disposição dos itens. Os recipientes com corante e fibra de madeira resinada estavam onde ele os deixara, assim como os pincéis sable Winsor & Newton Series 7, inclusive o que tinha uma mancha índigo na ponta, sempre posicionado num ângulo exato de 30 graus em relação aos outros.
Isso indicava que a equipe de limpeza resistira à tentação de entrar em sua área de trabalho. Ele duvidava que seus colegas também o tivessem respeitado.
Na verdade, soube por fontes confiáveis que seu pequeno enclave acortinado se tornara o ponto de encontro mais popular entre os funcionários do museu, tomando o posto da máquina de café espresso na sala de descanso.
Gabriel tirou a jaqueta de couro e ligou duas lâmpadas de halogênio. A deposição de Cristo, considerada a melhor pintura de Caravaggio, reluziu perante a luz branca intensa. Gabriel ficou parado na frente da tela alta por alguns minutos, com a mão no queixo, a cabeça inclinada para um lado e os olhos fixos na imagem assombrosa. Nicodemos, musculoso e descalço, retribuiu o olhar
enquanto deitava o corpo pálido e inerte de Cristo na laje de pedra funerária, onde seria preparado para o sepultamento. Ao lado, estava João Evangelista, que, no desespero para tocar seu amado mestre uma última vez, acabou abrindo

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a ferida no torso do Salvador. Nossa Senhora e Madalena os observavam em silêncio, com as cabeças curvadas, e Maria de Cléofas erguia os braços aos céus em lamento. Era uma obra de imenso pesar e ternura, intensificados pelo uso revolucionário da luz por parte de Caravaggio. Até mesmo Gabriel, que trabalhava na pintura havia semanas, sempre tinha a impressão de ser um intruso num momento desolador de angústia.
O quadro escurecera com o tempo, em especial no canto esquerdo, e a entrada da tumba já não era mais tão visível. Havia pessoas no mundo da arte italiana – incluindo Giacomo Benedetti, o famoso especialista em Caravaggio do Istituto
Centrale per il Restauro – que questionavam se ela deveria voltar a ser proeminente.
O estudioso foi forçado a compartilhar sua opinião com um repórter do La Repubblica quando o restaurador escolhido para o projeto, por razões inexplicáveis, não buscou se aconselhar com ele antes de começar a cuidar da obra. Benedetti também ficou abalado com a recusa do museu a divulgar a identidade do funcionário. Durante vários dias, os jornais ligaram repetidamente para o Vaticano, pedindo que o segredo fosse revelado. Como era possível, esbravejavam, que um tesouro nacional como aquele pudesse ser confiado a um homem sem nome? A tempestade enfim terminou quando Antonio Calvesi, o restaurador-chefe do Vaticano, informou que o homem em questão tinha credenciais  impecáveis, incluindo duas restaurações magistrais para o Santo Padre
– A crucificação de São Pedro, de Reni, e o Martírio de São Erasmo, de Poussin.
Mas não mencionou que ambos os projetos, conduzidos numa mansão remota na Úmbria, haviam sido atrasados devido a operações do serviço secreto de inteligência do Estado de Israel.
Gabriel nutrira esperanças de poder restaurar o Caravaggio num isolamento similar, mas Calvesi havia decretado que a pintura não poderia sair do Vaticano, obrigando-o a ficar dentro do laboratório, cercado pelos funcionários do local.
Allon foi alvo de uma intensa curiosidade, algo previsível. Por muitos anos, as pessoas tinham acreditado que ele era um restaurador com dons incríveis e umtemperamento instável chamado Mario Delvecchio. Se os empregados se sentiram traídos, não demonstraram. De forma geral, Gabriel era tratado com uma ternura natural àqueles que cuidam de objetos danificados. Os outros mantinham silêncio em sua presença, bem cientes da necessidade óbvia de privacidade e tomavam cuidado para não olhar em seus olhos por muito tempo, como se temessem encontrar algo desagradável. Nas raras ocasiões em que falavam com ele, as conversas eram limitadas a arte e amenidades. E quando as discussões entre os funcionários se voltavam para as políticas do Oriente Médio, eles se abstinham de criticar a terra natal do restaurador. Apenas Enrico Bacci, que

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havia feito uma intensa campanha pela restauração do Caravaggio, se opusera a Gabriel por razões morais. Ele se referia à cortina preta como a “Cerca da Segregação” e colocou um pôster com os dizeres “Palestina Livre” na parede de seu pequeno escritório. Gabriel pôs um pouco de emulsão Mowolith 20 média na paleta, acrescentou grânulos de pigmento seco e diluiu a mistura com um solvente até conseguir a  consistência e densidade desejadas. Em seguida, pegou uma viseira com lupa e focou na mão direita de Cristo, que pendia como na Pietà de Michelangelo, com os dedos voltados alegoricamente para o canto da pedra funerária. Gabriel tinha passado vários dias tentando restaurar uma série de escoriações ao longo dos dedos. Ele não foi o primeiro artista a ter dificuldades: o próprio Caravaggio fizera cinco outras versões antes de finalizar a pintura, em 1604. Ao contrário de seu quadro anterior – uma representação tão controversa da morte da Virgem que acabou sendo removida da Igreja de Santa Maria della Scala –, A deposição
foi imediatamente aclamada como uma obra-prima e sua reputação atravessou a Europa em pouquíssimo tempo. Em 1797, ela chamou a atenção de Napoleão Bonaparte, um dos maiores saqueadores de arte e antiguidades da história, e foi levada pelos Alpes até Paris, permanecendo lá até 1817, quando foi devolvida à custódia do papado e pendurada no Vaticano.
Gabriel teve o laboratório só para si por algumas horas. Às dez da manhã, ele escutou o barulho das portas automáticas, seguido pelos passos pesados de Enrico Bacci. Em seguida, entrou Donatella Ricci, uma especialista no primeiro período da Renascença que sussurrava num tom reconfortante para as pinturas sob seus cuidados. O próximo a chegar foi Tommaso Antonelli, um dos principais encarregados pela restauração da Capela Sistina, que sempre andava elo laboratório na ponta dos pés com seus sapatos de sola macia, silencioso como um ladrão.
Por fim, às dez e meia, Gabriel escutou o som distinto dos calçados feitos à mão de Antonio Calvesi sobre o chão de linóleo. Poucos segundos depois, o restaurador-chefe passou agitado pela cortina, desviando-se do tecido negro como um matador se esquivando de um touro. Com o topete desgrenhado e a gravata sempre frouxa, tinha o ar de um homem perpetuamente atrasado para um compromisso que, se pudesse, evitaria. Ele se acomodou num banquinho alto e mordiscou pensativo a haste de seus óculos de leitura enquanto inspecionava o trabalho de Gabriel.
– Nada mal – comentou Calvesi, com admiração genuína. – Você fez issosozinho ou Caravaggio passou aqui para dar uma força?
– Eu pedi para ele me ajudar, mas parece que estava ocupado.

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– Não diga. Onde ele estava?
– De volta à prisão em Tor di Nona. Pelo que entendi, ele andou passeando pelo Campo Marzio com uma espada.
– De novo? – Calvesi se inclinou para observar a tela mais de perto. – Se eu fosse você, pensaria em mexer nesse craquelê ao longo do dedo indicador. Gabriel ergueu a viseira e ofereceu sua paleta para Calvesi. O italiano respondeu com um sorriso conciliatório. Ele era um restaurador habilidoso – em sua juventude, fora um rival de Gabriel –, mas já haviam se passado muitos anos
desde a última vez que ele passara um pincel numa tela. Atualmente, Calvesi passava a maior parte do tempo atrás de dinheiro. Apesar das imensas fortunas seculares, o Vaticano era forçado a depender da bondade de estranhos para cuidar de sua extraordinária coleção de arte e antiguidades. O miserável soldo de Gabriel era uma fração pequena do que ele ganhava trabalhando com restaurações privadas. Mas era um pequeno preço a se pagar pela oportunidade única de lidar com uma pintura como A deposição.

– Alguma chance de você terminar no futuro próximo? – perguntou Calvesi.
– Eu gostaria de tê-lo de volta na galeria para a Semana Santa.
– Quando cai a Semana Santa este ano?
– Vou fingir que não escutei. – Calvesi mexeu distraído nos itens no carrinho de Gabriel.
– Tem algo em mente, Antonio?
– Um dos nossos patronos mais importantes vai visitar o museu amanhã. Um norte-americano. Muito generoso. É o tipo de generosidade que mantém este lugar funcionando.
– E?
– Ele pediu para ver o Caravaggio. Na verdade, ele queria saber se alguém estaria disposto a lhe ensinar um pouco sobre restauração.
– Você andou cheirando acetona de novo, Antonio?
– Ele poderia ao menos vê-lo?
– Não.
– Por que não?
Gabriel encarou a pintura por um instante, em silêncio.
– Porque não seria justo com ele.
– Com o patrono?
– Com Caravaggio. A restauração deveria ser nosso segredinho, Antonio. Nosso trabalho é entrar e sair sem sermos vistos. E isso devia ser confidencial.
– E se eu conseguir a permissão de Caravaggio?
– Não a peça se ele estiver com a espada na mão.

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Gabriel baixou a viseira e retomou o trabalho.
– Sabe, Gabriel, você é que nem ele. Teimoso, arrogante e exageradamente talentoso.
– Mais alguma coisa que eu possa fazer por você, Antonio? – perguntou Gabriel, impaciente, batendo o pincel na paleta.
– Não por mim. Mas estão exigindo sua presença na capela.
– Qual capela?
– A única que importa. Gabriel limpou o pincel e o colocou com cuidado no carrinho. Calvesi sorriu.
– Você compartilha outra característica com Caravaggio.
– E qual seria?
– Paranoia.
– Caravaggio tinha boas razões para ser paranoico. Eu também.

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Capela Sistina É possível que os quase 550 metros quadrados da Capela Sistina sejam o espaço mais visitado de Roma. Todos os dias, milhares de turistas passam pelas portas comuns do aposento para esticar o pescoço e observar, maravilhados, os afrescos gloriosos que adornam as paredes e o teto enquanto são observados por gendarmes com uniformes azuis que parecem não ter outra função além de pedir silenzio. Observar a capela sozinho é ter a experiência que seu criador, o papa Sisto IV, pretendia transmitir. Com as luzes reduzidas e a multidão ausente, é quase possível escutar os sons das batalhas passadas ou ver Michelangelo no topo de um andaime dando os toques finais em A criação de Adão.
Na parede oeste da capela, está a outra obra-prima de Michelangelo, O Último Julgamento. Iniciada trinta anos após o teto ser concluído, a pintura retrata o Apocalipse e a segunda vinda de Cristo, com todas as almas humanas se erguendo ou caindo em direção às suas recompensas ou castigos eternos, num turbilhão de cores e angústia. O afresco é a primeira coisa que os cardeais
veem ao entrarem na capela para escolher um novo papa, e naquela manhã parecia ser o alvo da atenção de um padre. Alto, magro e muito bonito, ele usava

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a batina preta com uma faixa magenta feita à mão por um alfaiate eclesiástico que morava perto do Panteão. Seus olhos pretos irradiavam uma inteligência feroz e inflexível e a linha rígida do maxilar sugeria que era perigoso contrariá-lo – o que era verdade. O monsenhor Luigi Donati, secretário pessoal de Sua Santidade, tinha poucos amigos dentro do Vaticano, aliados apenas ocasionais e inimigos determinados. Era comum que os outros se referissem a ele como um
Rasputin clerical, o verdadeiro poder por trás do trono papal, ou como o “Papa Negro”, uma alusão pejorativa a seu passado jesuíta. Donati não se importava.
Embora fosse um estudioso devoto de Ignácio e Agostinho, ele tendia a seguir a orientação de um filósofo secular italiano chamado Maquiavel, que considerava melhor um príncipe temido do que amado.
Entre as muitas transgressões de Donati – ao menos do ponto de vista de alguns membros da fofoqueira corte papal –, estavam seus laços estreitos com o notório espião e assassino Gabriel Allon. A parceria forjada entre ambos desafiava a história e a fé – Donati, o soldado de Cristo, e Gabriel, o homem da arte que, por um acaso, fora compelido a levar uma vida clandestina de violência.
Apesar dessas diferenças óbvias, eles tinham muito em comum. Ambos possuíam uma moral e princípios sólidos e acreditavam que questões com grandes implicações deveriam ser tratadas em particular. No decorrer de sua longa amizade, Gabriel agira ora como protetor, ora como revelador de alguns dos segredos mais sombrios do Vaticano – e Donati fora seu cúmplice. Os dois haviam contribuído muito para melhorar a relação tortuosa entre os católicos e seus doze milhões de primos espirituais distantes, os judeus.
Gabriel permaneceu em silêncio ao lado de Donati e contemplou O Último Julgamento.Próximo ao centro da imagem, junto ao pé esquerdo de Cristo, estava um dos dois autorretratos que Michelangelo havia escondido nos afrescos. Ele representara a si mesmo como São Bartolomeu segurando sua própria pele esfolada, uma resposta não muito sutil aos críticos contemporâneos de seu trabalho.
– Suponho que já tenha vindo aqui antes – falou Donati, sua voz forte ecoando na capela vazia.
– Só uma vez – respondeu Gabriel depois de um instante. – Foi no outono de 1972, bem antes da restauração. Eu estava me passando por um estudante alemão em viagem pela Europa. Vim aqui à tarde e fiquei até os guardas me forçarem a sair. No dia seguinte...
Sua voz se perdeu. No dia seguinte, com a visão de Michelangelo do fim dos tempos ainda fresca em sua mente, Gabriel entrou no saguão de um apartamento na Piazza Annibaliano. Parado em frente ao elevador, com uma garrafa de vinho de figueira numa das mãos e uma cópia de As mil e uma noites na

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outra, estava um intelectual palestino magro chamado Wadal Zwaiter. Ele era membro do grupo terrorista Setembro Negro, responsável pelo massacre das Olimpíadas de Munique, e por essa razão foi silenciosamente sentenciado à morte. Gabriel pediu, num tom calmo, que Zwaiter dissesse seu nome em voz alta e atirou nele onze vezes, uma bala para cada israelense morto em Munique.
Nos meses que se seguiram, Gabriel mataria outros cinco integrantes, no ato de abertura de uma carreira distinta que durou muito mais do que ele jamais desejou.Trabalhando a mando de seu mentor, o lendário mestre de espionagem Ari Shamron, ele desempenhou algumas das operações mais célebres na história da espionagem israelense. Agora, quebrado e exausto, Gabriel havia retornado a Roma, onde tudo começara. E uma das poucas pessoas no mundo em quem ele podia confiar era um padre católico chamado Luigi Donati.
Gabriel virou as costas para a pintura e observou o outro lado da capela retangular, depois dos afrescos de Botticelli e Perugino, onde ficava o pequeno forno bojudo usado para queimar as cédulas durante os conclaves. Então, recitou:
– “O Templo que o Rei Salomão edificou ao Senhor tinha 60 côvados de comprimento, 20 de largura e 30 de altura.”
– Primeiro Livro dos Reis – completou Donati –, capítulo 6, versículo 2.Gabriel fitou o teto.
– Seus antepassados construíram esta simples capela com as exatas dimensões do Templo de Salomão por alguma razão. Mas qual? Mostrar respeito aos seus irmãos mais velhos, os judeus? Ou declarar que a velha lei tinha sido substituída pela nova, que o antigo templo fora trazido a Roma, junto com os conteúdos sagrados do Santo dos Santos?
– Talvez tenha sido um pouco de ambos – respondeu Donati, pensativo.
– Muito diplomático de sua parte, monsenhor.
– Fui treinado como um jesuíta. O obscurecimento é o nosso forte. Gabriel consultou o relógio.
– A manhã já está acabando... A capela não deveria estar vazia.
– Não – concordou Donati distraidamente.
– Onde estão os turistas, Luigi?
– Por enquanto, apenas os museus estão abertos ao público.
– Por quê?
– Temos um problema.
– Onde?

Donati franziu a testa e meneou a cabeça para a esquerda.

* * *

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