quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Em Contos escolhidos, que ganha nova edição pela Biblioteca Azul, Huxley retoma uma das melhores tradições da literatura inglesa, a short story .
Jorge de Almeida*
O jovem Aldous Huxley viu a guerra de longe. Considerado inapto para o serviço militar, em razão dos graves problemas de visão que o acompanhariam por toda a vida, ele permaneceu em segurança no bucólico interior da Inglaterra, enquanto seus colegas de Eton e Oxford enfrentavam no continente o horror das trincheiras. Apesar disso, ou por essa mesma razão, a peculiar dialética que atinge o intelectual moderno fez com que Huxley se tornasse um dos observadores mais argutos dos efeitos devastadores gerados pela guerra de 1914-18 (que ainda não se chamava a Primeira, mas permaneceu sendo a Grande, para a maioria dos europeus). Nas áreas em que o jovem Huxley exercia intensa atividade crítica, como a música e as artes plásticas, mas também na poesia e no drama, gêneros aos quais dedicou seus esforços durante o conflito, o impacto da guerra solapou a confiança nas formas tradicionais de representação, já questionadas pelo modernismo da virada do século. A situação de crise abriu espaço para o radicalismo das vanguardas, termo não por acaso retirado do jargão militar.
No âmbito da narrativa, essa ruptura histórica e formal se consolidou em duas grandes vertentes da literatura europeia do pós-guerra. De um lado, aqueles que se aproximavam das intenções vanguardistas, optando por uma subversão ainda mais radical da forma, na tentativa de expressar, acolhendo as ruínas da narrativa realista, todo o sofrimento e absurdo da nova situação. De outro, os que adotavam uma atitude de certo modo conservadora, do ponto de vista formal, mas contemporânea quanto ao tom e matéria. Autores que ainda escreviam como os mestres realistas do século xix, mas exibiam uma irônica consciência da insuficiência dos meios narrativos que utilizavam para retratar o conturbado século xx. Aldous Huxley faz parte dessa segunda vertente, aproximando-se do alemão Thomas Mann. Ambos foram logo reconhecidos pela crítica como grandes escritores, mas também foram acusados de passar ao largo das inovações técnicas que marcaram a narrativa dos anos 1920. Em busca de uma redefinição dos procedimentos realistas, ambos desenvolveram novas formas para a antiga “narrativa de ideias”, em que o essencial não é a ação dos protagonistas, mas sim o modo como, em longos diálogos e discussões, as personagens refletem sobre questões artísticas, políticas e sociais de seu tempo. O leitor atento percebe, através do olhar ao mesmo tempo compassivo e distanciado do narrador, que os dilemas da vida intelectual europeia, expostos em intermináveis jantares e festas, são também a prova de que seus fundamentos já estavam condenados historicamente.
Com o rigor ferino do humour britânico, sem dúvida mais acessível que a ironia metafísica alemã, Huxley retratou a comicidade involuntária da tragédia de seus personagens, atordoados na agitação desesperada dos roaring twenties. Nesse período, sua produção seguia o ritmo da época: em dez anos, Huxley publicou cinco livros de contos e novelas, seus primeiros quatro romances, além de vários volumes de ensaios, críticas e relatos de viagem. Três décadas e outra guerra depois, tendo trocado a velha Inglaterra pelos Estados Unidos e abandonado a narrativa curta para se dedicar aos experimentos filosóficos e aos romances, foi convencido a reunir seus melhores contos em um único volume. O resultado da escolha gerou o livro que o leitor tem em mãos, publicado pela primeira vez em 1957. Os vinte e um contos valem por si, mas também reconhecemos neles a semente daquilo que, nos romances posteriores, iria caracterizar o típico narrador huxleyano, capaz de convencer e emocionar pela erudição sincera, ao mesmo tempo em que questiona a ideia e os usos da cultura. Sua crítica à afetação intelectual da elite inglesa adquire, desde o primeiro momento, o sentido de um diagnóstico do tempo, e isso afasta as suspeitas de um pedantismo ainda maior por parte do autor.
Nas obras escritas durante os anos 1920, Huxley expõe os dilemas de sua própria classe e geração, pois sabe que os que sobreviveram à guerra não estão à altura das exigências do novo tempo. Isso aparece de forma alegórica, mas com paradoxal realismo, em dois contos desse volume. Em “O jovem Arquimedes”, um bem intencionado casal de ingleses, reconhecendo na Itália a genialidade de uma criança pobre, tenta salvá-la da ignorância da família camponesa, acreditando que “grandes épocas geram grandes homens”. A consequência é tão trágica quanto o final de outro conto, no qual um nobre inglês, de nome Hércules, tenta conviver com a dura realidade de ser um anão. Intelectual e moralmente superior aos que o cercam, termina ridicularizado pelo filho idiota de altura normal. A grandeza de Huxley, nesses breves contos, está na denúncia ao mesmo tempo trágica e irônica da pequenez do esnobismo elitista e vulgar de seus contemporâneos, e na firme convicção de que a cultura deve sempre criticar a si mesma, se não quiser ser reduzida a mera conversa de salão.
*É professor de Letras da USP (Universidade de São Paulo)
O autor
Aldous Leonard Huxley nasceu em 26 de julho de 1894 no condado de Surrey, na Inglaterra. Em 1930 publicou Contraponto, que figurou em várias listas dos Cem melhores romances do século XX, em 1932 publicou o clássico Admirável mundo novo. Em 1954 narrou suas experiências com mescalina em As portas da percepção. Huxley morreu em 22 de novembro de 1963. Dele, a Biblioteca Azul publica Os demônios de Loudun, A situação humana, Também o cisne morre, entre outros títulos.


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