segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Em "O Homem mais Procurado" (Record), o autor britânico John Le Carré aborda criticamente a guerra ao terror




Após 11 de Setembro, Hamburgo acolhera alguns dos autores do atentado terrorista. Na calada da noite, Issa, um muçulmano checheno, entra clandestinamente na cidade. O misterioso passado Issa leva a advogada Annbel até Tommy Brue, herdeiro de um banco sediado em Hamburgo, que mantém uma conta em nome de pai de Issa, um líder militar que acumulou riquezas através de práticas desumanas.
Caminhando pelas ruas de Hamburgo, de braço dado com a mãe, um campeão turco de boxe peso-pesado não pode ser culpado por deixar de reparar que está sendo seguido por um garoto magrelo de sobretudo preto.
Grande Melik, como era conhecido por seus admiradores na vizinhança, era um cara enorme, peludo, desgrenhado e gentil, com um sorriso espontâneo, o cabelo preto amarrado em um rabo de cavalo e um passo suave e despreocupado que, mesmo sem a mãe, ocupava metade da calçada. Aos 20 anos, já era uma celebridade em seu mundinho, e não somente pelas proezas no ringue: foi eleito representante juvenil de seu grupo islâmico de esportes, foi três vezes finalista nos 100 metros borboleta no Campeonato do Norte da Alemanha e, como se isso já não bastasse, também era um astro no gol do time de futebol em que jogava aos sábados.
Como a maioria das pessoas muito grandes, estava mais acostumado a ser olhado do que a olhar para os outros, outro motivo pelo qual o garoto magrelo conseguiu segui-lo durante três dias e três noites consecutivas.
Os dois fizeram contato visual pela primeira vez quando Melik e a mãe, Leyla, saíam da Agência de Viagens al-Umma, onde tinham acabado de comprar passagens de avião para o casamento da irmã de Melik na cidade natal da família, nos arredores de Ancara. Sentindo que alguém o encarava fixamente, Melik olhou em volta e deparou-se com um garoto alto e assustadoramente magro, da mesma altura que ele, barba por fazer, olhos avermelhados e fundos e um longo sobretudo negro de mágico no qual caberiam três pessoas. Tinha um keffiyeh preto e branco ao redor do pescoço e um alforje de pele de camelo pendurado no ombro. Ele olhou para Melik e depois para Leyla. Sem piscar, retornou o olhar parar Melik, dessa vez chamando sua atenção com os olhos ferozes e profundos.
Mas o ar de desespero do rapaz não deveria perturbar tanto Melik, pois a agência de viagens ficava à margem do saguão da principal estação ferroviária, na qual toda sorte de almas perdidas — andarilhos alemães, asiáticos, árabes, africanos ou turcos como ele, mas menos afortunados — passava o dia. Sem falar nos homens sem pernas em carrinhos elétricos, traficantes de drogas e seus compradores, mendigos e seus cachorros e um cowboy de 70 anos em uma calça de couro coberta de tachinhas prateadas. Poucos tinham trabalho, e um grupo como aquele não deveria estar em solo alemão, mas todos eram, na melhor das hipóteses, tolerados sob uma política deliberada de destituição, e aguardavam a deportação iminente, que em geral era efetuada ao amanhecer. Somente os recém-chegados ou os realmente ousados se arriscavam. Imigrantes ilegais sorrateiros transformavam a estação em moradia.
Outra boa razão para ignorar o garoto era a música clássica que as autoridades tocavam a todo volume naquela parte do saguão por meio de uma barreira de caixas de som bem osicionadas. O propósito, longe de ser espalhar sentimentos de paz e de bem-estar entre os ouvintes, era expulsá-los o quanto antes do local.
Apesar de tudo isso, o rosto do garoto ficou gravado na mente de Melik e, por um breve instante, ele se sentiu constrangido por sua própria felicidade.
Mas por que deveria? Algo maravilhoso tinha acabado de acontecer e ele mal conseguia esperar para ligar para a irmã e contar que a mãe deles, Leyla, depois de seis meses cuidando do marido moribundo e de um ano com o coração em luto por ele, estava fervilhando de prazer com a perspectiva de comparecer ao casamento da filha, falando sobre o que vestiria, se o dote era grande o bastante e se o noivo era tão bonito quanto todos, inclusive a irmã de Melik, diziam.
Assim, por que Melik não deveria conversar com a própria mãe? — e foi o que fez, entusiasmado, até a casa. Foi a calma do garoto, ele pensou mais tarde. Aquelas rugas de envelhecimento em um rosto tão novo quanto o meu. Uma visão de inverno em um lindo dia de primavera.

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