QUARTO E ÚLTIMO LIVRO DA FRANQUIA “THE #WALKINGDEAD” TEM SUA CAPA REVELADA
O quarto e último livro da franquia The Walking Dead já tem capa e data reveladas para ser lançado em terras gringas.
A série é composta por A Ascensão do Governador, O Caminho para Woodbury e A Quedo do Governador – Parte 1, e agora o mais recente, A Queda do Governador – Parte 2. Todos os livros foram escritos por Robert Kirkman, criador dos quadrinhos e Jay Bonansinga.
No Brasil ainda não há data prevista de lançamento do livro e nem se a capa permanece igual a edição norte-americana (o que deve acontecer, já que as capas brasileiras são iguais às gringas). No mês passado a editora Galera Record lançou A Queda do Governador – Parte 1, que está a venda em todas as livrarias do país.
A Queda do Governador – Parte 2 mostra o encontro do Governador com Rick e Michonne e a batalha final na prisão narrados pelo principal vilão de The Walking Dead. Ao contrário dos outros dois livros, desta vez teremos os acontecimentos dos quadrinhos serão mostrados sob a ótica do Governador.
Sinopse:A franquia de zumbis mais celebrada da década está de volta. O quarto — e último — livro promete contar em detalhes o destino deste que é o personagem mais controvertido em um mundo dominado por mortos-vivos. Com seu senso doentio e muito particular de justiça, ele convence a todos de Woodbury que a única forma de acabar com o mal é destruir todos os habitantes da prisão.
Capítulo 1
O incêndio se inicia no primeiro andar, as chamas lambem o papel de parede rosa-repolho, espalhando-se pelo teto de gesso, e borrifando fumaça preta e tóxica pelos corredores e quartos da casa em Farrel Street, deixando-o cego e tirando-lhe o fôlego. Ele disparara pela sala de jantar, em busca das escadas dos fundos, e ao encontrá-las, grita para baixo da escadaria velha de madeira e segue na direção da escuridão almiscarada do porão.
— Philip?! PHILIP!?! PHILLLLIIIIIIP!!?!
Ele rasteja pelo piso de cimento imundo, com marcas de infiltração, vasculhando freneticamente a adega escura em busca do irmão. No andar de cima, a casa pega fogo e estala, a conflagração ruge pelos cômodos entulhados do bangalô humilde, o calor pressiona a fundação. Ele se vira inutilmente, andando em círculos, verificando as extensões sombreadas da adega envolta em fumaça, afastando teias de aranha e engasgando com a fumaça acre e o fedor pútrido de amônia de beterraba enlatada velha, as fezes de ratos e o isolamento velho de fibra de vidro.
Ele consegue ouvir o ranger e os estampidos de vigas de madeira desabando no piso acima conforme o redemoinho foge do controle — o que não faz sentido, porque a pequena casa em que ele passou a infância em Waynesboro, Georgia, nunca pegou fogo, pelo que ele se lembra. Mas ali está ela, destruindo-se em um inferno terrível, e ele não consegue encontrar o irmão, porra. Como foi parar ali? E afinal onde está Philip, porra? Ele precisa de Philip. Merda, Philip saberia o que fazer!
— PHILLLLLLLLIIIIIIIIIIP!
O grito histérico sai de dentro dele como um leve sopro, um chilreio sem fôlego, um sinal que se esvai no rádio sintonizado em alguma estação distante. De repente, ele vê um portal em uma das paredes do porão — uma abertura estranha e côncava como uma escotilha num submarino, de onde um brilho esverdeado esquisito emana — e ele percebe que a abertura é nova. Essa abertura não existia no porão da casa de sua infância em Farrel Street, mas, novamente, como magia negra, ali está aquela porra. Ele tropeça na direção da abertura verde mal iluminada e radiante na escuridão. Ao impulsionar o corpo pela abertura, ele entra em uma cabine de garagem sufocante, feita de blocos de concreto.
A câmara está vazia. As paredes exibem marcas de tortura — riscos de sangue escuro, seco e as pontas esfrangalhadas de cordas fixas em ganchos — e o lugar irradia maldade. Uma maldade pura, inalterada, sobrenatural. Ele quer sair dali. Não consegue respirar. Seus pelos estão arrepiados. Ele não consegue emitir som algum além de um fraco gemido que vem da parte mais profunda de seus pulmões, um gemido angustiado. Ele ouve um ruído, se vira e vê outro portal verde-gangrena brilhando, então dispara na direção dele. Ele passa pela abertura e sai em um bosque de pinheiros no limite de Woodbury. Ele reconhece a clareira, a lenha caída formando um pequeno anfiteatro natural — o chão coberto por pinhas foscas, fungos e ervas-daninhas. O coração dele acelera.
Aquele é um lugar ainda pior — um cenário de morte. Uma figura emerge da floresta e adentra a luz pálida. É seu velho amigo, Nick Parsons, desengonçado e esquisitão como sempre, espreitando na clareira com uma espingarda .12 de alimentação manual, o rosto parecendo mais uma máscara suada e horrorizada.
— Senhor — murmura Nick com a voz embargada. — Limpai-nos das impurezas.
— Nick ergue a espingarda. O cano parece pantagruélico, como um planeta enorme cobrindo o sol, apontando diretamente para ele.
— Renuncio a todos os meus pecados — continua Nick, com a voz sepulcral. — Perdoe-me, oh, senhor… perdoe-me.
Nick puxa o gatilho. O ferrolho estala. O estouro em câmera lenta se incendeia como uma corona amarelo brilhante, como os raios de um sol moribundo, e ele sente como se estivesse sendo puxado das botas, atirado no espaço, sem peso, flutuando pela escuridão… na direção de um nimbo de luz branca celestial. É isso. É o fim do mundo, do mundo dele, o fim de tudo. Ele grita. Nenhum som sai de seu pulmão. Isso é a morte, o vazio sufocante, branco como magnésio, que surge do nada, e, muito repentinamente, como um interruptor sendo desligado, Brian Blake deixa de existir.
Tão repentinamente quanto um corte seco em um filme, ele está deitado no chão do seu apartamento em Woodbury — inerte, congelado, preso à madeira fria sentindo uma dor gélida e paralisante — com a respiração tão difícil e fraca que suas células parecem arquejar por vida. A visão dele consiste em uma cena entrecortada, embaçada e fractal dos azulejos do teto manchados pela infiltração — um olho completamente cego, a cavidade orbital fria como se um vento soprasse através dela. A fita adesiva pende de um dos lados da boca do homem e as minúsculas inalações e exalações pelas narinas ensanguentadas são quase imperceptíveis ao ouvinte despercebido. Ele tenta se mover, mas não consegue sequer virar a cabeça. Mal consegue distinguir o som de
vozes com os nervos auditivos que se contraem com agonia.
— E quanto à garota? — pergunta uma voz, de algum lugar da sala.
— Foda-se ela, já está fora da zona de segurança agora e não tem chance alguma.
— E ele? Está morto?
Então outro som é reconhecido — um grunhido aquoso e distorcido — chamando a atenção para o canto da visão do homem. Enxergando pela retina embaçada do único olho bom, ele mal consegue discernir a minúscula figura no portal do outro lado da sala, o rosto pálido dela marcado pela decomposição, os olhos sem pupilas parecendo olhos de pardal. Ela avança até que a coleira de corrente tilinte alto.
— GAH! — grita uma das vozes masculinas quando o pequeno monstro tenta pegá-los com as garras.
Philip tenta desesperadamente falar, mas as palavras ficam presas na garganta escaldante dele. A cabeça de Philip pesa mil toneladas, e ele tenta mais uma vez falar com os lábios secos, rachados e ensanguentados, tenta formar palavras sem fôlego que simplesmente não se constituem. Então ele ouve a voz grave de barítono de Bruce Cooper.
— Tudo bem, foda-se! — O clique delator de um pino de segurança se desarmando em uma semiautomática quebra o silêncio. — A garota vai ser atingida por uma bala agora mesm…
— N-nnggh! — Philip coloca tudo o que tem na voz e consegue emitir mais uma série fraca de balbuciações. — N-nãã… n-não! — Ele toma mais um fôlego agoniante. Precisa proteger a filha Penny, independentemente de ela já estar morta, e isso já faz mais de um ano. Ela é tudo o que lhe restou no mundo. Ela é tudo. — N-não toque nela, porra… NÃO FAÇA ISSO!
Os dois homens voltam os olhares na direção do que está no chão, e pela mais breve fração de segundo, Philip tem um lampejo dos rostos deles enquanto o encaram boquiabertos. Bruce, o mais alto, é afro-americano e tem a cabeça raspada, a qual está franzida de horror e repulsa. O outro homem, Gabe, é branco e tem o físico de um caminhão Mack, um corte à escovinha da marinha e gola rulê preta. Pelo olhar deles, está claro que Philip Blake deveria estar morto.
Deitado naquele pedaço de compensado de 4×8 centímetros ensopado de sangue, ele não faz ideia de como deve estar com uma má aparência — principalmente seu rosto, que ele sentia como se tivesse sido amaciado por um picador de gelo — e por um breve momento, as expressões daqueles homens rudimentares, simples, olhando boquiabertos para Philip enviam um alarme de aviso ao cérebro dele. A mulher que trabalhou nele — Michonne é o nome dela, se não lhe falha a memória — fez bem seu trabalho. Pelos pecados que cometeu, ela o deixou tão perto dos portões da morte quanto é possível que alguém fique sem atravessá-los.
Os sicilianos dizem que a vingança é um prato que se come frio, mas essa garota o serviu com uma bandeja fumegante de agonia. Ter o braço direito amputado e depois cauterizado logo acima do cotovelo é o menor dos problemas de Philip. O olho esquerdo dele, no momento, está caído na lateral do rosto, colado à pele por gavinhas secas de tecido ensanguentado. Mas pior do que isso — muito pior para Philip Blake — é a sensação fria e grudenta que se espalha pelas entranhas dele brotando do lugar em que seu pênis foi cortado com um golpe da espada elegante daquela mulher. A lembrança daquele pequeno giro — o ferrão de uma vespa de metal — agora o manda de volta para o crepúsculo da semiconsciência. Philip mal consegue ouvir as vozes.
— PORRA! — Bruce encara de olhos arregalados o homem com o bigode fino que já foi saudável e esguio. — Ele está vivo!
Gabe fica observando.
— Que merda, Bruce… o doutor e Alice foram embora, porra! Que diabos vamos fazer?
Em algum momento, outro homem entrou no apartamento feito um borrão de respiração pesada e estalando uma espingarda de alimentação manual. Philip não consegue ver quem é nem ouvir as vozes muito bem, pois Philip está flutuando entre a consciência e o esquecimento enquanto os homens que pairam sobre ele continuam a conversa brusca e em pânico.
A voz de Bruce:
— Vocês, tranquem esse merdinha no outro quarto. Vou descer para buscar Bob.
A voz de Gabe é a próxima:
— Bob?! Aquele bêbado da porra que está sempre sentado lá embaixo, perto da porta?
As vozes começam a sumir conforme o manto frio e escuro toca Philip.
— …afinal, o que ele pode fazer…?
— …provavelmente não muito…
— …então por que…?
— …ele pode fazer mais do que qualquer um de nós…
Ao contrário da opinião pública e da mitologia dos filmes, o médico de combate comum não é sequer remotamente tão habilidoso quanto um cirurgião traumatologista experiente e credenciado nem quanto um clínico geral. A maioria dos médicos recebe menos de três meses de treinamento durante o acampamento de recrutas, e até o mais prodigioso desses indivíduos mal ultrapassa o nível de um técnico de emergência ou de um paramédico.
Eles conhecem os primeiros socorros básicos, algumas técnicas de ressuscitação e os rudimentos da traumatologia, e isso é tudo. São atirados em campo com unidades de batalha e espera-se que simplesmente mantenham os soldados feridos respirando — ou mantenham o sistema circulatório intacto — até que a vítima possa ser transportada para uma unidade cirúrgica móvel. São barcos-reboques humanos — endurecidos pelas condições da frente de batalha,
calejados por testemunharem uma corrente constante de sofrimento — dos quais se espera somente que coloquem Band-Aid e uma tala nos ferimentos de perfuração da guerra.
O oficial hospitalar de primeira classe Bob Stookey serviu uma única rodada com a Sexagésima Oitava Companhia Alfa, no Afeganistão, treze anos antes, na tenra idade de 36, tendo sido convocado pouco depois da invasão inicial. Ele foi um dos homens mais velhos a se alistar na época — os motivos para o alistamento tiveram muito a ver com um divórcio que acabou mal na época — e se tornou uma espécie de tio para os mais jovens ao seu redor.
Ele começou como um motorista de ambulância superqualificado nos limites de Camp Dwyer e trabalhou até se tornar médico dos campos de batalha na primavera seguinte. Bob tinha a habilidade de divertir os garotos com piadas horrorosas e doses proibidas da sempre presente garrafa de Jim Beam. Também tinha o coração mole — os praças o amavam por isso — e morria um pouco sempre que perdia um fuzileiro. Quando Bob foi mandado de volta para o mundo,
uma semana após completar 37 anos, ele tinha morrido 111 vezes e tratava esse trauma tomando meio quarto de garrafa de uísque por dia.
Todo esse movimento de Tempestade e Ímpeto do passado de Bob tinha sido afogado há muito tempo pelo horror e o clamor da praga, assim como a perda avassaladora de seu amor secreto, Megan Lafferty. A dor cresceu de forma tão maligna dentro dele que agora — naquela noite — naquele instante — Bob está completamente alheio ao fato de que está prestes a ser levado de volta ao campo de batalha.
— BOB!
Encostado nos tijolos diante da casa do Governador, semiconsciente, com a saliva seca e cinzas espalhadas pela jaqueta verde-oliva surrada, Bob se move ao ouvir a voz estrondosa de Bruce Cooper. A escuridão da noite queima vagarosamente com o amanhecer, e Bob já começou a tremer por causa do vento frio e da noite inquieta de sonhos febris.
— Levante-se! — ordena o homem grandalhão ao sair aos tropeços do prédio e se aproximar do ninho de jornais ensopados, cobertores em frangalhos e garrafas vazias de Bob. — Precisamos da sua ajuda… lá em cima! AGORA!
— O-o quê? — Bob esfrega o rosto lamuriante e arrota ácidos estomacais. — Por quê?
— É o Governador! — Bruce se abaixa e segura o braço inerte de Bob. — Você é médico do exército, não é?
— Fuzileiros navais… o-oficial hospitalar — gagueja Bob, sentindo como se estivesse sendo erguido por um sistema de roldanas. Sua cabeça está girando. — Por uns quinze minutos… há um milhão de anos. Não sei fazer porra nenhuma.
Bruce o levanta como se fosse um manequim, segurando Bob com força pelos ombros.
— Mas vai tentar, porra! — Bruce sacode o homem. — O Governador tem cuidado de você, certificando-se de que está sendo alimentado, de que não está bebendo até morrer, e agora você vai devolver o favor.
Bob engole o enjoo, esfrega o rosto e acena, hesitante.
— Tudo bem, me leve até ele.
A caminho, ao passar pelo saguão, subir as escadas e atravessar o corredor dos fundos, Bob pensa que não deve ser nada demais, que o Governador deve estar gripado ou algo assim, ou bateu com a porra do dedo e agora estão exagerando, como sempre. E conforme os homens se apressam na direção da última porta à esquerda, Bruce quase deslocando o braço de Bob, que apenas por um instante sente o cheiro de alguma coisa como cobre e almíscar escapando pela porta entreaberta, e o odor dispara avisos na cabeça de Bob Stookey. Logo antes de Bruce o puxar para dentro do apartamento — naquele instante horrível antes de Bob atravessar o portal e ver o que o espera — ele tem um lampejo da guerra.
A memória repentina e desenfreada que percorre sua mente naquele momento o faz encolher o corpo — o cheiro, aquele ensopado rico em proteínas que pairava sobre a unidade cirúrgica improvisada em Parwan Province; a pilha de ataduras cobertas de pus marcadas para incineração; o ralo por onde a bile escorria; aquelas macas ensopadas de sangue assando debaixo do sol do Afeganistão — tudo isso lampeja no cérebro de Bob naquela fração de segundo antes que ele se depare com o corpo no chão do apartamento. O odor o deixa arrepiado e obriga Bob a se segurar no portal para manter o equilíbrio quando Bruce o empurra para dentro do vestíbulo, e Bob, por fim, olha direito para o Governador — ou para o que sobrou do homem — na plataforma de compensado profanada.
— Tranquei a garota e soltei o braço dele — diz Gabe, mas Bob mal consegue ouvir o homem ou ver o outro cara, o outro panaca chamado Jameson, que está agachado no quarto, com as mãos unidas de um jeito estranho, os olhos quentes de pânico. A tontura ameaça jogar Bob no chão. Ele arqueja. A voz de Gabe gorgoleja, como se saísse de dentro d’água. — Ele desmaiou, mas continua respirando.
— Puta mer… — Bob mal emite um ruído, pois sua voz está embargada e incolor.
Ele cai de joelhos. Encara e encara e encara os restos contorcidos, chamuscados, ensopados de sangue e flagelados de um homem que um dia percorreu as ruas do pequeno reino de Woodbury como se fosse um cavaleiro do rei Arthur. Agora, o corpo desfigurado de Philip Blake começa a se metamorfosear na mente de Bob Stookey no corpo daquele pobre jovem do Alabama: subtenente Bobby McCullam, o garoto que assombra os sonhos de Bob, aquele que teve metade do corpo arrancada por um dispositivo explosivo improvisado nos limites de Kandahar.
Sobreposto ao rosto do Governador, em uma imagem dupla grotesca, Bob agora vê o fuzileiro, aquela máscara da morte que era seu rosto com o capacete; olhos vermelhos e uma careta ensanguentada apoiados na alça debaixo do queixo, o olhar terrível fixado em Bob, o Motorista da Ambulância. Me mate, murmurava o garoto para Bob, que não podia fazer nada pelo rapaz, a não ser colocá-lo no vagão de carga escaldante já apinhado de fuzileiros mortos. Me mate, dissera o garoto, deixando Bob desamparado e completamente mudo; o jovem fuzileiro morreu com o olhar fixo em Bob. Tudo isso percorre a imaginação de Bob num instante, puxando o vômito para o esôfago dele, enchendo sua boca com ácidos estomacais, queimando no fundo de sua garganta,
irrompendo das cavidades nasais de Bob feito fogo líquido.
Bob se vira e ruge, vomitando no tapete imundo da sala.
Todo o conteúdo de seu estômago — uma dieta líquida de 24 horas de uísque barato e goles ocasionais de Sterno — saem como um jato, formando uma poça no tapete. De quatro, Bob ofega repetidas vezes, as costas arqueadas, o corpo se convulsionando. Ele tenta falar entre arquejos aquosos.
— Eu… eu não… nem consigo olhar para ele. — Bob inspira. Um estremecimento espasmódico percorre seu corpo. — Não posso… não posso fazer nada p-por ele!
Bob sente a mão de alguém, forte como um torno fixo, apertar sua nuca e parte de sua jaqueta surrada do exército. A mão o puxa com violência, deixando-o de pé, e Bob quase é arrancado das botas.
— O doutor e Alice se foram! — grunhe Bruce para ele. Os rostos dos dois estão tão próximos agora que uma névoa fina de perdigotos borrifa em Bob quando Bruce segura a nuca do bêbado com mais força. — Se não fizer nada, ele vai MORRER, PORRA! — Bruce sacode o homem. — QUER QUE ELE MORRA?!
Inerte na mão de Bruce, Bob emite um grunhido:
— Eu… eu… eu não… sei.
— ENTÃO FAÇA ALGUMA COISA, PORRA!!
Com um aceno cambaleante, Bob se volta para o corpo distorcido no chão. Ele sente o aperto do torno no pescoço se afrouxar. Bob se agacha e passa a ver apenas o governador.
Bob vê todo o sangue escorrendo pelo tronco despido, formando manchas grudentas, no formato de mapas, que já começavam a secar e escureciam à luz fraca da sala. Ele olha para o cotoco chamuscado do braço direito, então avalia a cavidade ocular exposta e ensopada de sangue, a órbita ocular, brilhante e gelatinosa como um ovo cozido mole pendia da lateral do rosto do homem por gavinhas de tecido.
Ele repara no pântano de sangue arterial formando uma poça ao redor das partes íntimas do homem. E, por fim, Bob repara na respiração breve e árdua — o peito do homem mal se infla e esvazia.
Algo estala dentro de Bob Stookey — deixando-o sóbrio com a velocidade e a intensidade de sais de cheiro. Talvez seja a velha sensação de guerra retornando. Não há tempo para hesitação no campo de batalha — nem espaço para repulsa, medo ou paralisia —, pois é preciso seguir em frente. Depressa. De forma imperfeita. Apenas seguir em frente. Triagem é tudo. Interromper o sangramento primeiro, manter as vias aéreas livres e a pulsação, então descobrir como mover a vítima. Só que mais do que isso, bem ali Bob é tomado por uma onda de emoção.
Ele nunca teve filhos, mas o rompante de empatia que sente de súbito por aquele homem se assemelha àquele que percorre o corpo de um pai na cena de um desastre de automóvel, a habilidade de erguer quinhentos quilos de aço de cima de uma criança presa nas ferragens. Aquele homem se importava com Bob. O Governador tratava Bob com gentileza, até mesmo carinho — sempre fazendo questão de visitar Bob, se certificar de que ele tinha comida e água suficientes, além de cobertores e um lugar para ficar. A revelação acalma Bob, o envolve, desanuvia sua visão e faz a mente focar. O coração dele desacelera, e estende a mão para pressionar a ponta do dedo na jugular ensopada de sangue do Governador. A pulsação está tão fraca que poderia ser confundida com uma pupa estremecendo dentro de um casulo de pele.
A voz de Bob sai num tom baixo, equilibrado e autoritário:
— Vou precisar de ataduras limpas, esparadrapo… e um pouco de água oxigenada. — Ninguém vê o rosto de Bob mudar. Ele afasta mechas do cabelo ensebado e cheio de pomada para a cabeça. Os olhos do homem se semicerram, aninhados em pés de galinha e rugas fundas. As sobrancelhas de Bob se franzem com a intensidade de um mestre do jogo se preparando para mostrar o que tem na mão. — Depois teremos que levá-lo à enfermaria. — Por fim, Bob olha para os outros homens, a voz assumindo uma gravidade ainda mais profunda. — Farei o possível.
O quarto e último livro da franquia The Walking Dead já tem capa e data reveladas para ser lançado em terras gringas.
A série é composta por A Ascensão do Governador, O Caminho para Woodbury e A Quedo do Governador – Parte 1, e agora o mais recente, A Queda do Governador – Parte 2. Todos os livros foram escritos por Robert Kirkman, criador dos quadrinhos e Jay Bonansinga.
No Brasil ainda não há data prevista de lançamento do livro e nem se a capa permanece igual a edição norte-americana (o que deve acontecer, já que as capas brasileiras são iguais às gringas). No mês passado a editora Galera Record lançou A Queda do Governador – Parte 1, que está a venda em todas as livrarias do país.
A Queda do Governador – Parte 2 mostra o encontro do Governador com Rick e Michonne e a batalha final na prisão narrados pelo principal vilão de The Walking Dead. Ao contrário dos outros dois livros, desta vez teremos os acontecimentos dos quadrinhos serão mostrados sob a ótica do Governador.
Sinopse:A franquia de zumbis mais celebrada da década está de volta. O quarto — e último — livro promete contar em detalhes o destino deste que é o personagem mais controvertido em um mundo dominado por mortos-vivos. Com seu senso doentio e muito particular de justiça, ele convence a todos de Woodbury que a única forma de acabar com o mal é destruir todos os habitantes da prisão.
Capítulo 1
O incêndio se inicia no primeiro andar, as chamas lambem o papel de parede rosa-repolho, espalhando-se pelo teto de gesso, e borrifando fumaça preta e tóxica pelos corredores e quartos da casa em Farrel Street, deixando-o cego e tirando-lhe o fôlego. Ele disparara pela sala de jantar, em busca das escadas dos fundos, e ao encontrá-las, grita para baixo da escadaria velha de madeira e segue na direção da escuridão almiscarada do porão.
— Philip?! PHILIP!?! PHILLLLIIIIIIP!!?!
Ele rasteja pelo piso de cimento imundo, com marcas de infiltração, vasculhando freneticamente a adega escura em busca do irmão. No andar de cima, a casa pega fogo e estala, a conflagração ruge pelos cômodos entulhados do bangalô humilde, o calor pressiona a fundação. Ele se vira inutilmente, andando em círculos, verificando as extensões sombreadas da adega envolta em fumaça, afastando teias de aranha e engasgando com a fumaça acre e o fedor pútrido de amônia de beterraba enlatada velha, as fezes de ratos e o isolamento velho de fibra de vidro.
Ele consegue ouvir o ranger e os estampidos de vigas de madeira desabando no piso acima conforme o redemoinho foge do controle — o que não faz sentido, porque a pequena casa em que ele passou a infância em Waynesboro, Georgia, nunca pegou fogo, pelo que ele se lembra. Mas ali está ela, destruindo-se em um inferno terrível, e ele não consegue encontrar o irmão, porra. Como foi parar ali? E afinal onde está Philip, porra? Ele precisa de Philip. Merda, Philip saberia o que fazer!
— PHILLLLLLLLIIIIIIIIIIP!
O grito histérico sai de dentro dele como um leve sopro, um chilreio sem fôlego, um sinal que se esvai no rádio sintonizado em alguma estação distante. De repente, ele vê um portal em uma das paredes do porão — uma abertura estranha e côncava como uma escotilha num submarino, de onde um brilho esverdeado esquisito emana — e ele percebe que a abertura é nova. Essa abertura não existia no porão da casa de sua infância em Farrel Street, mas, novamente, como magia negra, ali está aquela porra. Ele tropeça na direção da abertura verde mal iluminada e radiante na escuridão. Ao impulsionar o corpo pela abertura, ele entra em uma cabine de garagem sufocante, feita de blocos de concreto.
A câmara está vazia. As paredes exibem marcas de tortura — riscos de sangue escuro, seco e as pontas esfrangalhadas de cordas fixas em ganchos — e o lugar irradia maldade. Uma maldade pura, inalterada, sobrenatural. Ele quer sair dali. Não consegue respirar. Seus pelos estão arrepiados. Ele não consegue emitir som algum além de um fraco gemido que vem da parte mais profunda de seus pulmões, um gemido angustiado. Ele ouve um ruído, se vira e vê outro portal verde-gangrena brilhando, então dispara na direção dele. Ele passa pela abertura e sai em um bosque de pinheiros no limite de Woodbury. Ele reconhece a clareira, a lenha caída formando um pequeno anfiteatro natural — o chão coberto por pinhas foscas, fungos e ervas-daninhas. O coração dele acelera.
Aquele é um lugar ainda pior — um cenário de morte. Uma figura emerge da floresta e adentra a luz pálida. É seu velho amigo, Nick Parsons, desengonçado e esquisitão como sempre, espreitando na clareira com uma espingarda .12 de alimentação manual, o rosto parecendo mais uma máscara suada e horrorizada.
— Senhor — murmura Nick com a voz embargada. — Limpai-nos das impurezas.
— Nick ergue a espingarda. O cano parece pantagruélico, como um planeta enorme cobrindo o sol, apontando diretamente para ele.
— Renuncio a todos os meus pecados — continua Nick, com a voz sepulcral. — Perdoe-me, oh, senhor… perdoe-me.
Nick puxa o gatilho. O ferrolho estala. O estouro em câmera lenta se incendeia como uma corona amarelo brilhante, como os raios de um sol moribundo, e ele sente como se estivesse sendo puxado das botas, atirado no espaço, sem peso, flutuando pela escuridão… na direção de um nimbo de luz branca celestial. É isso. É o fim do mundo, do mundo dele, o fim de tudo. Ele grita. Nenhum som sai de seu pulmão. Isso é a morte, o vazio sufocante, branco como magnésio, que surge do nada, e, muito repentinamente, como um interruptor sendo desligado, Brian Blake deixa de existir.
Tão repentinamente quanto um corte seco em um filme, ele está deitado no chão do seu apartamento em Woodbury — inerte, congelado, preso à madeira fria sentindo uma dor gélida e paralisante — com a respiração tão difícil e fraca que suas células parecem arquejar por vida. A visão dele consiste em uma cena entrecortada, embaçada e fractal dos azulejos do teto manchados pela infiltração — um olho completamente cego, a cavidade orbital fria como se um vento soprasse através dela. A fita adesiva pende de um dos lados da boca do homem e as minúsculas inalações e exalações pelas narinas ensanguentadas são quase imperceptíveis ao ouvinte despercebido. Ele tenta se mover, mas não consegue sequer virar a cabeça. Mal consegue distinguir o som de
vozes com os nervos auditivos que se contraem com agonia.
— E quanto à garota? — pergunta uma voz, de algum lugar da sala.
— Foda-se ela, já está fora da zona de segurança agora e não tem chance alguma.
— E ele? Está morto?
Então outro som é reconhecido — um grunhido aquoso e distorcido — chamando a atenção para o canto da visão do homem. Enxergando pela retina embaçada do único olho bom, ele mal consegue discernir a minúscula figura no portal do outro lado da sala, o rosto pálido dela marcado pela decomposição, os olhos sem pupilas parecendo olhos de pardal. Ela avança até que a coleira de corrente tilinte alto.
— GAH! — grita uma das vozes masculinas quando o pequeno monstro tenta pegá-los com as garras.
Philip tenta desesperadamente falar, mas as palavras ficam presas na garganta escaldante dele. A cabeça de Philip pesa mil toneladas, e ele tenta mais uma vez falar com os lábios secos, rachados e ensanguentados, tenta formar palavras sem fôlego que simplesmente não se constituem. Então ele ouve a voz grave de barítono de Bruce Cooper.
— Tudo bem, foda-se! — O clique delator de um pino de segurança se desarmando em uma semiautomática quebra o silêncio. — A garota vai ser atingida por uma bala agora mesm…
— N-nnggh! — Philip coloca tudo o que tem na voz e consegue emitir mais uma série fraca de balbuciações. — N-nãã… n-não! — Ele toma mais um fôlego agoniante. Precisa proteger a filha Penny, independentemente de ela já estar morta, e isso já faz mais de um ano. Ela é tudo o que lhe restou no mundo. Ela é tudo. — N-não toque nela, porra… NÃO FAÇA ISSO!
Os dois homens voltam os olhares na direção do que está no chão, e pela mais breve fração de segundo, Philip tem um lampejo dos rostos deles enquanto o encaram boquiabertos. Bruce, o mais alto, é afro-americano e tem a cabeça raspada, a qual está franzida de horror e repulsa. O outro homem, Gabe, é branco e tem o físico de um caminhão Mack, um corte à escovinha da marinha e gola rulê preta. Pelo olhar deles, está claro que Philip Blake deveria estar morto.
Deitado naquele pedaço de compensado de 4×8 centímetros ensopado de sangue, ele não faz ideia de como deve estar com uma má aparência — principalmente seu rosto, que ele sentia como se tivesse sido amaciado por um picador de gelo — e por um breve momento, as expressões daqueles homens rudimentares, simples, olhando boquiabertos para Philip enviam um alarme de aviso ao cérebro dele. A mulher que trabalhou nele — Michonne é o nome dela, se não lhe falha a memória — fez bem seu trabalho. Pelos pecados que cometeu, ela o deixou tão perto dos portões da morte quanto é possível que alguém fique sem atravessá-los.
Os sicilianos dizem que a vingança é um prato que se come frio, mas essa garota o serviu com uma bandeja fumegante de agonia. Ter o braço direito amputado e depois cauterizado logo acima do cotovelo é o menor dos problemas de Philip. O olho esquerdo dele, no momento, está caído na lateral do rosto, colado à pele por gavinhas secas de tecido ensanguentado. Mas pior do que isso — muito pior para Philip Blake — é a sensação fria e grudenta que se espalha pelas entranhas dele brotando do lugar em que seu pênis foi cortado com um golpe da espada elegante daquela mulher. A lembrança daquele pequeno giro — o ferrão de uma vespa de metal — agora o manda de volta para o crepúsculo da semiconsciência. Philip mal consegue ouvir as vozes.
— PORRA! — Bruce encara de olhos arregalados o homem com o bigode fino que já foi saudável e esguio. — Ele está vivo!
Gabe fica observando.
— Que merda, Bruce… o doutor e Alice foram embora, porra! Que diabos vamos fazer?
Em algum momento, outro homem entrou no apartamento feito um borrão de respiração pesada e estalando uma espingarda de alimentação manual. Philip não consegue ver quem é nem ouvir as vozes muito bem, pois Philip está flutuando entre a consciência e o esquecimento enquanto os homens que pairam sobre ele continuam a conversa brusca e em pânico.
A voz de Bruce:
— Vocês, tranquem esse merdinha no outro quarto. Vou descer para buscar Bob.
A voz de Gabe é a próxima:
— Bob?! Aquele bêbado da porra que está sempre sentado lá embaixo, perto da porta?
As vozes começam a sumir conforme o manto frio e escuro toca Philip.
— …afinal, o que ele pode fazer…?
— …provavelmente não muito…
— …então por que…?
— …ele pode fazer mais do que qualquer um de nós…
Ao contrário da opinião pública e da mitologia dos filmes, o médico de combate comum não é sequer remotamente tão habilidoso quanto um cirurgião traumatologista experiente e credenciado nem quanto um clínico geral. A maioria dos médicos recebe menos de três meses de treinamento durante o acampamento de recrutas, e até o mais prodigioso desses indivíduos mal ultrapassa o nível de um técnico de emergência ou de um paramédico.
Eles conhecem os primeiros socorros básicos, algumas técnicas de ressuscitação e os rudimentos da traumatologia, e isso é tudo. São atirados em campo com unidades de batalha e espera-se que simplesmente mantenham os soldados feridos respirando — ou mantenham o sistema circulatório intacto — até que a vítima possa ser transportada para uma unidade cirúrgica móvel. São barcos-reboques humanos — endurecidos pelas condições da frente de batalha,
calejados por testemunharem uma corrente constante de sofrimento — dos quais se espera somente que coloquem Band-Aid e uma tala nos ferimentos de perfuração da guerra.
O oficial hospitalar de primeira classe Bob Stookey serviu uma única rodada com a Sexagésima Oitava Companhia Alfa, no Afeganistão, treze anos antes, na tenra idade de 36, tendo sido convocado pouco depois da invasão inicial. Ele foi um dos homens mais velhos a se alistar na época — os motivos para o alistamento tiveram muito a ver com um divórcio que acabou mal na época — e se tornou uma espécie de tio para os mais jovens ao seu redor.
Ele começou como um motorista de ambulância superqualificado nos limites de Camp Dwyer e trabalhou até se tornar médico dos campos de batalha na primavera seguinte. Bob tinha a habilidade de divertir os garotos com piadas horrorosas e doses proibidas da sempre presente garrafa de Jim Beam. Também tinha o coração mole — os praças o amavam por isso — e morria um pouco sempre que perdia um fuzileiro. Quando Bob foi mandado de volta para o mundo,
uma semana após completar 37 anos, ele tinha morrido 111 vezes e tratava esse trauma tomando meio quarto de garrafa de uísque por dia.
Todo esse movimento de Tempestade e Ímpeto do passado de Bob tinha sido afogado há muito tempo pelo horror e o clamor da praga, assim como a perda avassaladora de seu amor secreto, Megan Lafferty. A dor cresceu de forma tão maligna dentro dele que agora — naquela noite — naquele instante — Bob está completamente alheio ao fato de que está prestes a ser levado de volta ao campo de batalha.
— BOB!
Encostado nos tijolos diante da casa do Governador, semiconsciente, com a saliva seca e cinzas espalhadas pela jaqueta verde-oliva surrada, Bob se move ao ouvir a voz estrondosa de Bruce Cooper. A escuridão da noite queima vagarosamente com o amanhecer, e Bob já começou a tremer por causa do vento frio e da noite inquieta de sonhos febris.
— Levante-se! — ordena o homem grandalhão ao sair aos tropeços do prédio e se aproximar do ninho de jornais ensopados, cobertores em frangalhos e garrafas vazias de Bob. — Precisamos da sua ajuda… lá em cima! AGORA!
— O-o quê? — Bob esfrega o rosto lamuriante e arrota ácidos estomacais. — Por quê?
— É o Governador! — Bruce se abaixa e segura o braço inerte de Bob. — Você é médico do exército, não é?
— Fuzileiros navais… o-oficial hospitalar — gagueja Bob, sentindo como se estivesse sendo erguido por um sistema de roldanas. Sua cabeça está girando. — Por uns quinze minutos… há um milhão de anos. Não sei fazer porra nenhuma.
Bruce o levanta como se fosse um manequim, segurando Bob com força pelos ombros.
— Mas vai tentar, porra! — Bruce sacode o homem. — O Governador tem cuidado de você, certificando-se de que está sendo alimentado, de que não está bebendo até morrer, e agora você vai devolver o favor.
Bob engole o enjoo, esfrega o rosto e acena, hesitante.
— Tudo bem, me leve até ele.
A caminho, ao passar pelo saguão, subir as escadas e atravessar o corredor dos fundos, Bob pensa que não deve ser nada demais, que o Governador deve estar gripado ou algo assim, ou bateu com a porra do dedo e agora estão exagerando, como sempre. E conforme os homens se apressam na direção da última porta à esquerda, Bruce quase deslocando o braço de Bob, que apenas por um instante sente o cheiro de alguma coisa como cobre e almíscar escapando pela porta entreaberta, e o odor dispara avisos na cabeça de Bob Stookey. Logo antes de Bruce o puxar para dentro do apartamento — naquele instante horrível antes de Bob atravessar o portal e ver o que o espera — ele tem um lampejo da guerra.
A memória repentina e desenfreada que percorre sua mente naquele momento o faz encolher o corpo — o cheiro, aquele ensopado rico em proteínas que pairava sobre a unidade cirúrgica improvisada em Parwan Province; a pilha de ataduras cobertas de pus marcadas para incineração; o ralo por onde a bile escorria; aquelas macas ensopadas de sangue assando debaixo do sol do Afeganistão — tudo isso lampeja no cérebro de Bob naquela fração de segundo antes que ele se depare com o corpo no chão do apartamento. O odor o deixa arrepiado e obriga Bob a se segurar no portal para manter o equilíbrio quando Bruce o empurra para dentro do vestíbulo, e Bob, por fim, olha direito para o Governador — ou para o que sobrou do homem — na plataforma de compensado profanada.
— Tranquei a garota e soltei o braço dele — diz Gabe, mas Bob mal consegue ouvir o homem ou ver o outro cara, o outro panaca chamado Jameson, que está agachado no quarto, com as mãos unidas de um jeito estranho, os olhos quentes de pânico. A tontura ameaça jogar Bob no chão. Ele arqueja. A voz de Gabe gorgoleja, como se saísse de dentro d’água. — Ele desmaiou, mas continua respirando.
— Puta mer… — Bob mal emite um ruído, pois sua voz está embargada e incolor.
Ele cai de joelhos. Encara e encara e encara os restos contorcidos, chamuscados, ensopados de sangue e flagelados de um homem que um dia percorreu as ruas do pequeno reino de Woodbury como se fosse um cavaleiro do rei Arthur. Agora, o corpo desfigurado de Philip Blake começa a se metamorfosear na mente de Bob Stookey no corpo daquele pobre jovem do Alabama: subtenente Bobby McCullam, o garoto que assombra os sonhos de Bob, aquele que teve metade do corpo arrancada por um dispositivo explosivo improvisado nos limites de Kandahar.
Sobreposto ao rosto do Governador, em uma imagem dupla grotesca, Bob agora vê o fuzileiro, aquela máscara da morte que era seu rosto com o capacete; olhos vermelhos e uma careta ensanguentada apoiados na alça debaixo do queixo, o olhar terrível fixado em Bob, o Motorista da Ambulância. Me mate, murmurava o garoto para Bob, que não podia fazer nada pelo rapaz, a não ser colocá-lo no vagão de carga escaldante já apinhado de fuzileiros mortos. Me mate, dissera o garoto, deixando Bob desamparado e completamente mudo; o jovem fuzileiro morreu com o olhar fixo em Bob. Tudo isso percorre a imaginação de Bob num instante, puxando o vômito para o esôfago dele, enchendo sua boca com ácidos estomacais, queimando no fundo de sua garganta,
irrompendo das cavidades nasais de Bob feito fogo líquido.
Bob se vira e ruge, vomitando no tapete imundo da sala.
Todo o conteúdo de seu estômago — uma dieta líquida de 24 horas de uísque barato e goles ocasionais de Sterno — saem como um jato, formando uma poça no tapete. De quatro, Bob ofega repetidas vezes, as costas arqueadas, o corpo se convulsionando. Ele tenta falar entre arquejos aquosos.
— Eu… eu não… nem consigo olhar para ele. — Bob inspira. Um estremecimento espasmódico percorre seu corpo. — Não posso… não posso fazer nada p-por ele!
Bob sente a mão de alguém, forte como um torno fixo, apertar sua nuca e parte de sua jaqueta surrada do exército. A mão o puxa com violência, deixando-o de pé, e Bob quase é arrancado das botas.
— O doutor e Alice se foram! — grunhe Bruce para ele. Os rostos dos dois estão tão próximos agora que uma névoa fina de perdigotos borrifa em Bob quando Bruce segura a nuca do bêbado com mais força. — Se não fizer nada, ele vai MORRER, PORRA! — Bruce sacode o homem. — QUER QUE ELE MORRA?!
Inerte na mão de Bruce, Bob emite um grunhido:
— Eu… eu… eu não… sei.
— ENTÃO FAÇA ALGUMA COISA, PORRA!!
Com um aceno cambaleante, Bob se volta para o corpo distorcido no chão. Ele sente o aperto do torno no pescoço se afrouxar. Bob se agacha e passa a ver apenas o governador.
Bob vê todo o sangue escorrendo pelo tronco despido, formando manchas grudentas, no formato de mapas, que já começavam a secar e escureciam à luz fraca da sala. Ele olha para o cotoco chamuscado do braço direito, então avalia a cavidade ocular exposta e ensopada de sangue, a órbita ocular, brilhante e gelatinosa como um ovo cozido mole pendia da lateral do rosto do homem por gavinhas de tecido.
Ele repara no pântano de sangue arterial formando uma poça ao redor das partes íntimas do homem. E, por fim, Bob repara na respiração breve e árdua — o peito do homem mal se infla e esvazia.
Algo estala dentro de Bob Stookey — deixando-o sóbrio com a velocidade e a intensidade de sais de cheiro. Talvez seja a velha sensação de guerra retornando. Não há tempo para hesitação no campo de batalha — nem espaço para repulsa, medo ou paralisia —, pois é preciso seguir em frente. Depressa. De forma imperfeita. Apenas seguir em frente. Triagem é tudo. Interromper o sangramento primeiro, manter as vias aéreas livres e a pulsação, então descobrir como mover a vítima. Só que mais do que isso, bem ali Bob é tomado por uma onda de emoção.
Ele nunca teve filhos, mas o rompante de empatia que sente de súbito por aquele homem se assemelha àquele que percorre o corpo de um pai na cena de um desastre de automóvel, a habilidade de erguer quinhentos quilos de aço de cima de uma criança presa nas ferragens. Aquele homem se importava com Bob. O Governador tratava Bob com gentileza, até mesmo carinho — sempre fazendo questão de visitar Bob, se certificar de que ele tinha comida e água suficientes, além de cobertores e um lugar para ficar. A revelação acalma Bob, o envolve, desanuvia sua visão e faz a mente focar. O coração dele desacelera, e estende a mão para pressionar a ponta do dedo na jugular ensopada de sangue do Governador. A pulsação está tão fraca que poderia ser confundida com uma pupa estremecendo dentro de um casulo de pele.
A voz de Bob sai num tom baixo, equilibrado e autoritário:
— Vou precisar de ataduras limpas, esparadrapo… e um pouco de água oxigenada. — Ninguém vê o rosto de Bob mudar. Ele afasta mechas do cabelo ensebado e cheio de pomada para a cabeça. Os olhos do homem se semicerram, aninhados em pés de galinha e rugas fundas. As sobrancelhas de Bob se franzem com a intensidade de um mestre do jogo se preparando para mostrar o que tem na mão. — Depois teremos que levá-lo à enfermaria. — Por fim, Bob olha para os outros homens, a voz assumindo uma gravidade ainda mais profunda. — Farei o possível.
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