sexta-feira, 27 de setembro de 2013

'À Mesa com o Diabo' conta a história do homem que enfrentou o cartel de CaliLivro escrito a partir da apuração do repórter investigativo William C. RempelEm "À Mesa com o Diabo", o repórter investigativo William C. Rempel conta a história de Jorge Salcedo, o homem que desmantelou o cartel de Cali, da Colômbia.
Jurado de morte, Salcedo vive escondido nos Estados Unidos. Rempel, que trabalhou por 36 anos como repórter investigativo e editor no jornal "Los Angeles Times", foi o único jornalista a ter acesso a essa história e a seu protagonista.




Jorge Salcedo acomodou sua bagagem de mão no compartimento sobre as poltronas e tomou seu assento na janela do velho Boeing 727. Era um voo de manhã bem cedo, de Bogotá a Cali, na Colômbia, e ele fazia a viagem com relutância. Além do horário inconveniente, o empresário de 41 anos não podia de modo algum se dar ao luxo de ficar longe do empreendimento mais recente que iniciara, uma pequena refinaria de reprocessamento de óleo de motor. O projeto já estava atrasado e ali estava ele num avião para uma viagem misteriosa. Não fazia a menor ideia de por que estava indo para Cali. Na verdade, até chegar ao Aeroporto Internacional El Dorado em Bogotá, uma hora antes, não sabia sequer seu destino.
"Jorge, você precisa vir comigo. Algumas pessoas querem te conhecer", afirmara seu amigo Mario ao telefone. Ele foi enfático. Disse a Jorge que fizesse uma pequena mala para apenas uma noite - depois desligou. Agora estavam juntos no avião.
"Que negócio é esse, Mario?" Jorge não conseguia esconder um tom de impaciência ao virar para o amigo sentado na poltrona do corredor. "O que a gente tá fazendo aqui?"
Como Jorge, Mario era um homem na casa dos 40 - em forma, com boa aparência, transmitindo autoconfiança. Mesmo em casuais roupas civis, parecia o militar prototípico, um personagem saído de algum filme. Mas o recém-reformado major Mario del Basto não tinha nada de fictício, era um soldado altamente condecorado.
"Depois que o avião subir", assegurou ele a Jorge, "a gente conversa". Acenou com a cabeça para alguns estranhos ainda de pé no corredor.
Jorge sempre confiara em Mario. Os dois haviam se tornado bons amigos desde que Jorge ingressara na reserva das forças armadas colombianas em 1984. Mario, um oficial do Exército regular, tornou-se comandante na unidade de reserva de Jorge, baseada em Cali. O major contava com Jorge como seu oficial no serviço de informações, graças a suas valiosas habilidades em armamentos, vigilância eletrônica, tecnologias de rádio e fotografia.
A reserva do Exército era uma posição não remunerada, voluntária, mas dava a Jorge um gostinho da carreira militar seguida por seu pai, o general Jorge Salcedo, que combatera pelas principais forças armadas colombianas e permanecera uma figura pública proeminente por quase 25 anos após se reformar, em meados da década de 1960. Jorge via reflexos de seu pai no major Del Basto. Ambos eram oficiais de carreira do Exército, usavam uniformes com o peito repleto de medalhas por bravura e tinham larga experiência no combate aos guerrilheiros antigoverno.
Crescer como filho de general proporcionara a Jorge inúmeras vantagens, de segurança financeira e respeito social a oportunidades para viajar - incluindo uma estadia prolongada nos Estados Unidos quando seu pai estava servindo no Kansas. Também influenciou suas opiniões sobre grupos como as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), contra as quais seu pai travava uma guerra. Em casa e na reserva, Jorge via os guerrilheiros como terroristas incorrigíveis e partilhava das frustrações amplamente disseminadas entre os militares pelo fato de que as conversações de paz sancionadas pelo governo simplesmente permitiam aos guerrilheiros se reagruparem e se reabastecerem.
"Estamos tentando convencê-los a morrer", queixava-se Mario para Jorge.

Mesmo para um herói militar como o major Del Basto, esse tipo de crítica contra a liderança civil era perigosa. Ele dividia suas opiniões somente com amigos íntimos, até que sua raiva não pôde mais ser contida.
No fim de 1988, Del Basto rejeitou uma promoção a coronel e deixou o Exército. Ele detonou o presidente Virgilio Barco por tratar as Farc com indulgência. Depois desapareceu. Jorge ficou sem notícias de Mario por vários dias - até o misterioso telefonema que o levou a subir a bordo do voo da companhia aérea Avianca.
"Vamos nos encontrar com uns sujeitos de Cali", começou Mario momentos depois da decolagem. Ele se curvava sobre a poltrona vazia entre ambos. O ruído dos motores protegia sua privacidade.

"Eu os conheço?"

"É possível. São importantes homens de negócios locais."

Jorge havia morado em Cali na infância, quando o pai servia como comandante de brigada por lá. Residiu ali outra vez no início dos anos 1980, quando se tornou sócio e engenheiro de uma fábrica de baterias nos arredores da terceira maior cidade colombiana.

"O que posso contar para você", continuou Mario, "é que esse pessoal tem um problema sério com Pablo Escobar. Ele anda atacando seus negócios, ameaçando suas famílias - é uma situação terrível".

A expressão de Jorge abruptamente endureceu, encarando o amigo. "Não me diga. A gente está indo se encontrar com uns sujeitos do cartel de Cali?"

Em janeiro de 1989, todo mundo na Colômbia sabia a respeito da rixa cada vez mais violenta entre o cartel de Medellín de Escobar e seus rivais em Cali. Por quase um ano, as manchetes traziam sangrentos relatos de bombas, gente desmembrada, tiroteios. O número de mortes entre testemunhas inocentes crescia. Como a maioria de seus amigos e conhecidos, Jorge temia e odiava Pablo Escobar. O chefão das drogas havia declarado guerra ao governo colombiano numa campanha para derrubar o acordo de extradição firmado por Bogotá com Washington.
Os assassinos que ele contratava miravam altos funcionários do país, policiais locais, investigadores criminais e juízes. Uma equipe de mercenários de Medellín chegou particularmente perto do alvo quando matou um amigo de infância de Jorge, Rodrigo Lara Bonilla, um popular ministro da Justiça.
Jorge não sabia muita coisa a respeito dos rivais de Escobar em Cali, a não ser por reputação. Eles eram tidos como menos violentos
- pelo menos, não matavam figuras públicas. Na verdade, os chefões do sul eram notoriamente conhecidos como "os Cavalheiros de Cali".
Entretanto, Jorge nunca considerou a possibilidade de escolher um dos dois lados. A guerra entre os cartéis não era assunto seu.
"Você devia ter me dito", disse Jorge. "Talvez eu não quisesse conhecer esse pessoal."
Mario deu de ombros. "Mas eles querem conhecer você."
Jorge abanou a cabeça, pasmo. Uma grande organização criminosa queria se encontrar com ele.Por quê? Mario olhou em volta para verificar se não havia ninguém escutando e continuou.
Pouco após deixar o Exército, disse Mario, ele havia sido chamado a Cali e recebido uma proposta para trabalhar como gerente de segurança para a família Rodríguez Orejuela. Jorge reconheceu o nome. Eram os donos de uma rede nacional de farmácias populares e também de um time de futebol, entre muitos outros negócios legítimos. Mas todo mundo sabia que eram também grandes traficantes. Como Escobar, negavam qualquer relação com o narcotráfico. Ao contrário de Escobar, mantinham o low profile.
"Esses caras estão temendo por suas vidas e por suas famílias", disse Mario. "Pablo está tentando acabar com eles - homens, mulheres, crianças, todo mundo." Ele disse que isso era particularmente injusto com o clã Rodríguez Orejuela, porque "não são pessoas violentas". Mario descreveu seu novo emprego como sendo o de manter mulheres e crianças inocentes a salvo dos assassinos contratados de Escobar. "E eles acham que você também pode ajudar."
"Então não é o negócio do cartel de drogas", disse Jorge, evidentemente aliviado.
"Não, claro que não." Mario baixou o tom de voz, de modo que até mesmo Jorge mal conseguia escutá-lo: "Mas não fale sobre cartéis. Eles odeiam essa palavra. Não existe cartel de Cali, está me entendendo? Eles são empresários."

"Sei. Tudo bem, mas por que eu?"

Jorge se considerava um empresário que reciclava óleo de motor e um engenheiro que projetava sistemas de manufatura ou mexia com câmeras e rádios. Na reserva do Exército, ele se especializou em vigilância e inteligência, uma área de interesse pessoal relativamente nova. Mesmo assim, não via qualquer motivo óbvio para ser chamado a Cali.
Perguntou mais uma vez: "Por quê?"
Mario sorriu, recostou na poltrona e não respondeu.

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